No passado dia 24 de Fevereiro, a Rússia desencadeou uma operação militar em larga escala na Ucrânia. Para Moscovo foi a única solução para impedir um genocídio e para alcançar a “desnazificação” de Kiev, para outros foi um imoral crime de agressão motivado pela irracionalidade de Vladimir Putin. A invasão é imoral e ilegal – como tantas outras que têm flagelado a humanidade – mas Putin é um actor racional, com uma lógica definida em torno de preferências e estratégias que visam promover, na sua perspectiva, a segurança nacional da Rússia. A compreensão dessa lógica é essencial para controlar a espiral de violência que tem vindo a devastar a Ucrânia e que, mal gerida, pode ter consequências catastróficas a nível global.

Se a racionalidade de uma política externa fosse avaliada de acordo com os valores liberais do respeito pelas normas internacionais, democracia e direitos humanos, Putin teria de ser considerado irracional, dada a violência que lançou sobre a Ucrânia. No entanto, essa racionalidade deve ser avaliada com base na prioridade dos Estados, que infelizmente não é normativa. Em geral, a prioridade da política externa dos Estados é garantir a segurança nacional, conceptualizada como a sua integridade territorial, a protecção da sua população e bens materiais, e a sobrevivência do regime político. É à luz da segurança nacional da Rússia que a racionalidade de Putin deve ser avaliada, e não com base naquilo que consideramos ser o moralmente correcto, nomeadamente o respeito pelos direitos fundamentais dos ucranianos, desde a sua integridade física até à liberdade para escolherem o seu destino político. Neste contexto, ainda que a invasão da Ucrânia seja evidentemente condenável do ponto de vista moral e legal, acaba por ser estrategicamente racional, visto que Putin procura obter benefícios para a segurança nacional russa. De acordo com Moscovo, os enormes custos humanos e materiais impostos à Ucrânia – assim como o trade-off de segurança imposto à própria população russa, dos soldados abatidos até aos civis que sofrerão com as sanções – compensam os ganhos em termos de segurança nacional, especialmente tendo em conta a protecção da sua integridade territorial e do seu regime.

Moscovo possui capacidades convencionais, nucleares tácticas e nucleares estratégicas que lhe conferem uma enorme capacidade de dissuasão. Porém convém não esquecer que os flancos abertos a um ataque convencional – especialmente por outra potência nuclear e num contexto hipotético de fragilidade interna de Moscovo – são uma fragilidade real, e não um cenário ilusório criado por mentalidades do século XIX que ignoram uma suposta realidade pós-moderna, politicamente civilizada, economicamente interdependente, e tecnologicamente interconectada a nível global. As extensas fronteiras terrestres da Rússia colocam enormes desafios de segurança a Moscovo, especialmente quando não existem barreiras geográficas intransponíveis nem recursos militares convencionais para as suprir. A fronteira com a China é um desses casos, assim como as fronteiras com os países da Ásia Central, mas o maior desafio coloca-se na Europa, onde a NATO impera a Oeste. Moscovo tem conseguido gerir politicamente os desafios colocados pelas fronteiras asiáticas, e na Europa de Leste conseguiu manter a Bielorrússia como Estado-tampão, mas permanece vulnerável em relação ao Báltico e à Ucrânia. Não só o seu acesso ao Mar Báltico está condicionado – apesar de Kaliningrado – como existem vulnerabilidades face a uma potencial invasão pelo Oeste. Neste momento não existe interesse ocidental em invadir o seu território, mas a possibilidade teórica de a NATO o fazer torna a Rússia mais insegura. Um sentimento que se agudiza pelo facto de ser racional para os EUA e para a União Europeia (UE) manterem uma linha de defesa dura em relação à Rússia, visto que esta permanece a maior potência militar europeia, o único Estado do continente com capacidade para manter uma zona hegemónica de influência e obviamente contestando a zona de influência estabelecida exogenamente por Washington através da NATO. A Guerra Fria mudou de roupa mas não desapareceu.

O alargamento da UE e NATO à Estónia, Letónia, e Lituânia foi um duro golpe que Moscovo não consegui impedir, dada a sua fragilidade após o colapso da União Soviética. A insegurança russa no Báltico torna-se ainda mais evidente quando a NATO conduz exercícios militares na região ou participa em treinos com Estados não-membros como a Suécia e a Finlândia. Contudo, o maior desafio estratégico prende-se com a Ucrânia, não só por ser um país que se democratizou, representando um exemplo perigoso para o regime de Putin, mas principalmente pelas consequências geopolíticas de uma eventual ligação militar ao Ocidente, seja através da NATO ou mesmo da UE, que possui uma clausula de defesa mútua com um grau relevante de ambiguidade. A Ucrânia não seguiu os passos da Bielorrússia, tornando-se num país cuja estratégia se inclinou gradualmente para a esfera de influência liberal, simbolizada pelo desejo de aderir à UE e à NATO, sentida fortemente com a Revolução Laranja de 2004-2005 e a subsequente presidência de Viktor Yushchenko, e consolidada após a queda de Viktor Yanukovych com a Revolução da Dignidade e a posterior anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. A postura de Volodymyr Zelensky, especialmente após a recente invasão do país, é o corolário dessa estratégia de aproximação ao Ocidente, algo quefoi sendo incrementalmente encorajado por parte dos EUA e da UE, conforme ilustrado pelas cimeiras da NATO de Bucareste em 2008 e de Bruxelas em 2021. Uma Ucrânia aliada do Ocidente representa um perigo para Moscovo, uma porta aberta para o Oeste russo, sem obstáculos geográficos que impeçam uma invasão, potencialmente letal quer pela proximidade com Moscovo quer pelo possível uso do país como plataforma de uma operação militar que corte o acesso da Rússia ao Mar Negro, Mar Cáspio e Cáucaso.

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Conforme previamente defendido por autores como George Kennan ou John Mearsheimer, uma Ucrânia aliada do Ocidente é inaceitável para uma Rússia que permaneça a maior potência militar europeia, mesmo que os EUA prometam que o objectivo da NATO não é ameaçá-la. Aliás, as promessas valem pouco quando estão em causa objectivos estratégicos, como a própria Rússia demonstrou em relação ao acordado no Memorando de Budapeste de 1994 e nos acordos de Minsk de 2014-2015. Nestas circunstâncias, se Moscovo apoiou o separatismo na Transnístria desde 1992, combateu ferozmente o separatismo no Daguestão e na Chechénia na década de 90 e interveio na Geórgia em 2008 por causa da Ossétia do Sul e da Abecásia, o comportamento em relação à Ucrânia seria previsível.

Perante a aproximação da Ucrânia ao Ocidente – uma escolha perfeitamente legítima de Kiev – Putin optou pela invasão, de modo a alterar o status quo em benefício da segurança russa, incluindo o secular interesse geopolítico da Rússia e a sua própria posição à frente do Kremlin. Assumindo que a manutenção do controlo sobre a Crimeia e regiões separatistas no Donbas está garantida – e que a Rússia não conseguiria ocupar toda a Ucrânia ou toda a parte Leste até ao Rio Dniepre, apesar da retórica identitária de Putin –  o objectivo da invasão militar passa por alcançar pelo menos um de três cenários através de negociações.

Do menos para o mais exequível:

  • expandir o controlo do Dombas pelo sul da Ucrânia, ligando-o a territórios ocupados ou associados a Moscovo, como a Crimeia ou, ainda que improvável, a Transnístria – e no processo ocupando cidades como Mariupol e Odessa, e cortando o acesso de Kiev ao Mar de Azov e Mar Negro;
  • promover uma mudança de regime em favor da Rússia, substituindo Zelensky por um político pró-russo ou estimulando um regime mais descentralizado que permita a Putin dividir para reinar;
  • uma Ucrânia neutra – não aliada do Ocidente e com capacidades militares minimalistas.

Putin podia ter optado por várias abordagens militares na promoção daqueles objectivos, desde operar apenas em zonas limitadas até à opção por uma invasão em larga escala – a escolhida. Esta invasão implicou necessariamente mais sangue, mais recursos, e maiores custos políticos para Moscovo a nível internacional e nacional. Putin arrisca, no mínimo, transformar a Rússia num Estado pária, uma prolongada crise económica, um decréscimo doméstico de popularidade, e até uma acusação no Tribunal Penal Internacional.

À partida, Putin parece ter incorrido em custos superiores aos benefícios. Visto que os actores racionais podem cometer erros — querem o melhor para si, mas podem optar pela estratégia errada – podemos dizer que Putin errou? A longo prazo, pode ser que sim, mas a curto prazo, a sua estratégia pode justificar-se por ganhos significativos, assumindo que o fim rápido do conflito acabaria por conduzir a uma diminuição da tensão com o  Ocidente e à sua aceitação de factos consumados. Em primeiro lugar, dado que a Ucrânia não “aprendeu a lição” das intervenções limitadas de 2014, Putin usa a violência para chocar e subjugar rapidamente os ucranianos, de modo a conseguir, no mínimo, a fácil neutralização da Ucrânia.

Em segundo lugar, porque pode consolidar o regresso da Rússia como grande potência, ensaiado recentemente não apenas na sua esfera de influência mas também em conflitos como o sírio e o chadiano. Em terceiro e último lugar, porque pode enfraquecer uma ordem liberal internacional fragilizada pelo declínio relativo do poder americano, pelas dificuldades domésticas de Joe Biden, e por erros como a retirada apressada do Afeganistão, assim como pelos limites militares da UE e por efectivos ou potenciais processos de mudança política nos seus Estados-membros, principalmente na Alemanha e França.

Em todo o caso, a estratégia violenta de Putin na Ucrânia acaba por ter um propósito defensivo, num cenário estrutural em que a Rússia não tem capacidades materiais para se expandir a Oeste da Bielorrússia e Ucrânia. Ou seja, não tem poder para reconstruir a esfera de influência soviética. Aliás, essa fragilidade reflecte-se na recente consolidação da sua parceria com a China – já institucionalizada anteriormente na Organização para a Cooperação de Xangai, formada em 2001 – que se encontra centrada no objectivo político de contestar a ordem internacional liberal liderada pelos EUA e, após a invasão da Ucrânia, no objectivo económico de apoiar Moscovo num contexto de sanções. Uma resposta do Ocidente deve ter em conta estas circunstâncias.

O que deve, então, fazer o Ocidente perante os apelos de Zelensky: abandonar a Ucrânia, apoiá-la com limites, ou apoiá-la sem limites? A primeira opção poderia parecer racional, tendo em conta o que referimos, sacrificando a Ucrânia no altar da competição entre as grandes potências. No entanto, fazê-lo implicaria um imoral abandono da Ucrânia e, mais importante para as chancelarias ocidentais, um custo de credibilidade que acabaria por ameaçar a sua própria segurança. A terceira opção seria impensável, visto que uma intervenção militar directa – mesmo através da tão falada zona de exclusão aérea – conduziria a um choque entre a NATO e a Rússia em relação a um país que não é vital para os interesses dos EUA. A única grande potência que considera a Ucrânia vital é a Rússia, a ponto de levar Moscovo a considerar o potencial uso de armas nucleares, do mesmo modo que a Casa Branca o faria caso se repetisse uma crise semelhante à de Cuba em 1962, com rivais a expandirem-se militarmente nas suas fronteiras. Assim sendo, nas actuais condições estratégicas, a opção mais racional do Ocidente foi a segunda: o apoio limitado à Ucrânia.

O objectivo do apoio limitado é pressionar Moscovo através do suporte humanitário, político, económico, e militar indirecto à Ucrânia, do uso de sanções pesadas contra a Rússia, e da mobilização junto de instituições como a ONU, de modo a aumentar os custos da intervenção para Putin – cujas forças têm sentido dificuldades no terreno – e a acelerar o fim do conflito em condições menos favoráveis para Moscovo. O perigo desta estratégia reside num eventual arrastar do conflito, aumentando os custos humanos, económicos, a tensão política e também a probabilidade de uma escalada militar acidental entre a NATO e a Rússia – mesmo que se mantenha uma probabilidade reduzida. No entanto, a utilidade esperada desta opção de apoio limitado permanece superior à das alternativas, tendo em conta a segurança dos países ocidentais. Sinalizar uma postura dissuasora por parte do Ocidente, de modo a impedir futuros ataques à ordem por si promovida e, consequentemente, à sua segurança. Em termos concretos, sendo bem sucedida, esta estratégia permitiria impedir a Rússia de alcançar os seus objectivos mais ambiciosos, forçando-a a aceitar uma solução negocial minimamente tragável para todas as partes. Por exemplo, um acordo que permitisse salvaguardar a independência formal do território controlado pela Ucrânia antes da invasão e a sobrevivência do seu regime democrático – preferencialmente mantendo-se Zelensky numa solução de governo, mesmo que difícil — a troco de uma Ucrânia neutral e do adiamento de negociações sobre a Crimeia e o Dombas. Um mal menor, no meio de tanta desgraça, o melhor que pode conseguir-se nas actuais condições de distribuição de poder.