No início da última década, Vargas Llosa deu à estampa um contundente e duríssimo ensaio onde descreve e critica a actual “civilização do espectáculo”. Entre outras, o Nobel aponta a transformação da cultura (e da vida pública, acrescentaria eu) numa vasta e lucrativa indústria de entretenimento, onde as obras, as personagens e até as ideias não se destacam pelo seu valor intrínseco, mas pela sua rendibilidade e alcance. Com o alvor das redes sociais e a crise dos órgãos tradicionais de comunicação, mais virados para o sensacionalismo do que para o serviço público, a civilização do espectáculo passou a ser uma outra consequência (senão causa) da “economia da atenção”, onde os cidadãos se transmutam em verdadeiros produtos que necessitam de ser presos aos ecrãs, lançando-se mão, para isso, das mais variadas e manipulativas técnicas. No fundo, na civilização do espectáculo prevalece o espalhafato, a aparência, o entretenimento, o fait-diver e o acessório, a rapidez, a emoção, a alienação, o alarmismo, o medo, a ansiedade e a conspiração.

Que este estado cultural e sociológico chegasse à política era só uma questão de tempo, ou não tivessem os servidores da res pública a necessidade de, também eles, prender o cidadão às suas ideias e projectos de bem comum. Mas que a Justiça fosse também apanhada na “curva da estrada” e se estivesse a transformar numa espécie de programa de entretenimento de domingo à noite é que já é assunto mais grave, sério e inesperado. A gravidade decorre da necessidade de o sistema de justiça dever procurar ser tudo menos todas as coisas que caracterizam a civilização do espetáculo. A Justiça, se quer ser eficaz e cumprir cabalmente as suas funções jurídico-constitucionais, tem de ser discreta e contida, urbana e correcta, proporcional e adequada, ponderada e substancial, racional e apaziguadora, garantística e equilibrada.

E é por isso com enorme constrangimento que vejo certos sectores da magistratura judicial e do Ministério Público a cederem à tentação do justicialismo, arrastando consigo o pouco que resta do bom nome e prestígio dos tribunais portugueses. Mais surpreendente ainda é notar que estas tendências não se restringem sequer às bases, antes perpassando toda a hierarquia, chegando aos mais altos magistrados que, por dever de ofício, protecção pessoal e do sistema, se deviam remeter ao silêncio, evitando expor-se confrangedoramente em entrevistas onde se confundem com representantes corporativos ou sindicais.

Está hoje na moda a “magistratura do espectáculo”, ao gosto popular, para consumo das massas. O que importa é o julgamento rápido, na praça pública, com pouco ou nenhum contraditório. Os expedientes usados por esta magistratura são de molde a criar aparato público, parangonas nos jornais, câmaras à porta (e até dentro) dos tribunais. Quer-se direccionar a atenção, marcar a agenda mediática, entreter o povo e ficar-se famoso durante uns quinze minutos. Repete-se até à exaustão as mesmas imagens, as mesmas escutas e os mesmos excertos dos despachos e decisões, explorando-se doentiamente pormenores completamente irrelevantes.

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Na magistratura do espectáculo, o Juiz 1 transfigura-se no Juiz X, de quem conhecemos o nome e os detalhes mais sórdidos, até os alimentares. Os procuradores e os juízes são como uma grande família, amando-se ou odiando-se amiúde. A justiça pessoaliza-se e personaliza-se… porque nenhum espectáculo funciona sem estrelas! Sucedem-se as entrevistas públicas e os comentários a casos concretos atabalhoadamente abstratizados. Como no showbiz, por vezes é preciso um acto ousado que capte a atenção da audiência: a fusão de um tribunal, uma detenção despropositada (ou várias), a leitura televisiva de um despacho-sentença, uma medida de coacção mais restritiva do que o necessário, uma “fuga” ao segredo de justiça (ou muitas) numa fase em que o arguido ainda nem sequer se começou a defender, um comentário fanfarrão, tantas vezes dando logo por praticados, sem julgamento, certos actos ou omissões.

A magistratura do espectáculo também não dispensa um bom vilão, quanto mais idiossincrático melhor, corporizando a Justiça a protagonista ofendida e inocente que tem de combater e aniquilar o mal alheio, bem à moda dos dramas televisivos do horário nobre. Para esta magistratura, a presunção de inocência é o código dos fracos e dos corruptos, só sendo absolvido quem prova a sua inocência para lá de qualquer dúvida razoável, numa perversa e kafkiana inversão do sistema. Os advogados são vistos e tratados publicamente como os ajudantes dos vilões, participando dos seus esquemas e protegendo-os temerariamente da espada de Dâmocles que sobre eles paira.

Tudo isto seria quase divertido se não fosse trágico! Esta tentação para o espectáculo penetra os fundamentos do consenso social, corrói as bases do Estado de Direito e destrói a percepção (já má) que os cidadãos têm da Justiça. Pior ainda, procura-se simplificar, atalhar caminho e responsabilizar a “crónica falta de meios” e o “excesso de garantias” dos intervenientes processuais para os falhanços e atrasos do sistema, assim se escamoteando que, por exemplo no Processo Penal, existe já um desequilíbrio que favorece a acusação. Senhores Magistrados do espectáculo: deixem-se de gabarolices e voltem à Justiça substantiva e ponderada (por vezes lenta, é certo!), feita nas salas de audiência e não nas páginas dos jornais; tratem os arguidos com a dignidade que lhes é inerente (e que é a mesma de qualquer outra pessoa), e compreendam definitivamente que os direitos e as garantias do processo são proporcionais à confiança que a sociedade pode depositar nas decisões dos tribunais e é para essa confiança que todos devemos trabalhar!