O quadro intitulado “A Menina da Secretaria Guiando o Povo” revelou-se presciente. Mostra a menina epónima a quem falta a parte de cima da roupa interior, rodeada por cavalheiros de fato escuro, paços de concelho, bandeiras, e canhões. Tudo respira uma atmosfera anaerógena, de formosura enorme. Sobre Eugénio Cruz, o seu autor, sabe-se pouco. Mas foi seu mérito ter apreendido na tela aquilo a que um poeta chamou “as sombras da futuridade”: neste caso a ideia de que Portugal viria a tornar-se um país essencialmente governado por meninas da secretaria. É verdade que a predominância do género requer a existência de uns quantos civis; mas como a existência de leões requer a de coelhos. O papel dos civis é em Portugal semelhante ao dos coelhos mortos que se atiram aos leões nos jardins zoológicos.

A expressão ‘Meninas da Secretaria’ não designa uma espécie mas todo um um género. O género compreende as inúmeras espécies dessa imensa maioria de portugueses para quem a única realidade literária, conversacional, política e moral é o direito administrativo. Nem todas estas espécies partilham os mesmos hábitos; todas porém seguem uma dieta idêntica, à base de civis. A semelhança entre espécies é assim profunda, comparável à que existe entre as várias espécies internacionais do género Arquitecto, do género Jovem, ou do género Bebedolas.

O quadro de Cruz foi pintado ao ar livre, e do natural. No seu diário conta como observou em repartições públicas, e durante muitos dias, a mão invisível que atira civis para o fosso das meninas da secretaria; e viu civis exprimirem uma pretensão, verbalizarem uma queixa, terem uma ideia, ou proporem uma solução. Mas o seu pincel e o seu talento fixaram-se no que segundo ele acontecia quase sempre a seguir. Mal um civil abria a boca, conta Cruz, a Menina abria imediatamente uma boca muito maior; nela rebrilhavam os dentes de oiro que hoje se notam no quadro; como nele se notam ainda filamentos da carne, e do fato escuro, do civil anterior.

Aos investigadores contemporâneos o diário de Eugénio Cruz não parece digno de crédito. A maioria considera-o um exagero bem disposto e profético, característico dos artistas plásticos. As meninas da secretaria ou os administrativistas, diz-se, não são leões; os seus dentes não comem realmente os civis. São em todo o caso instrumentos calculados do desespero: da ideia de que as coisas não são como parecem; de que os meios óbvios nunca são adequados; de que as decisões nunca são finais; de que há excepções quase secretas que se aplicam ao nosso caso; de que os negócios com o Estado não são como os outros negócios. Os seus adeptos relembram sem descanso aos civis que o direito administrativo foi feito para tornar coisas impossíveis; e assim todas as pessoas iguais perante a lei.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR