1.Quatro meses após ter caído o governo socialista que durou oito anos, Pedro Nuno Santos tweetou que o plano do novo governo para a saúde está a falhar e que reflete a instabilidade que “introduziu na área da saúde”. Fosse eu a Rainha de Inglaterra e diria “One must ask” se terá sido para não desestabilizar que o anterior governo não lhe mexeu. Marina Gonçalves também ensaiou o mesmo papel. Eu não sei se isto é anedota, mas ridículo é. E fruto de quem vive viciado nos ciclos noticiosos como é o caso dos políticos. Occupational hazard.
Quando o governo do partido de Pedro Nuno Santos caiu já a situação na saúde era caótica há anos, ginecologia e obstetrícia aterradoras, as listas de esperc gigantes e as horas de espera nos centros de saúde e urgências estratosféricas. Se é bom que continue? Claro que não, mas ninguém está à espera que um governo resolva o assunto em quatro meses. Estamos cansados pelo problema não ter sido resolvido em oito anos e quatro meses, pela acumulação isso sim, e nisso o PS pode apostar, tal como apostou na rejeição aos sacrifícios da troika, depois de a ter chamado. Figas para que portugueses culpem quem lá está.
Vendo a saúde da ótica da utilizadora, a área tem coisas esdrúxulas há governos imemoriais:
- o Estado tem um SNS, uma rede de hospitais e centros de saúde grosso modo, e depois comparticipa um subsistema de saúde para os seus funcionários irem a outros hospitais que não os da sua propriedade, naquela que deve ser a pior publicidade feita ao SNS; para além disso o Estado faz acordos com privados para suprir a incapacidade do SNS. Há 3.6 milhões de portugueses com seguro de saúde. Ora, existindo um SNS em que se investe cada vez mais, são 3.6 milhões de pessoas a mais com seguro. Dogmas à parte, é manifesto que o Estado não tem capacidade para tratar todos e o que a Constituição diz é que todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover, nada fala sobre a propriedade dos meios. A função do Estado é servir não é acumular riqueza, sob a forma de propriedade. Das duas uma, ou o Estado provê saúde a todos continuando a acordar com os privados criando uma rede universal transversal não importando o operador, de maneira a que os cidadãos se possam dirigir indistintamente ao hospital que lhe for mais conveniente por qualquer razão, geográfica ou especialidade; ou então, e talvez seja mais sustentável , porque não transforma o sistema num sistema de seguros, abre, por exemplo, a ADSE a todos sem limite de idade, o prémio do seguro continuará a ser uma taxa sobre o salário ou pensão, com ajustamento nos impostos, e o Estado pagará o prémio de quem não tiver recursos para o fazer? Os privados, por exemplo, estão a abrir clínicas e pequenos hospitais, com urgências, em muitas cidades pequenas, mais distantes dos hospitais centrais e onde os centros de saúde têm horários escandalosos. Cidades geralmente rodeadas por zonas de população mais envelhecida, salários e pensões mais baixos, menor mobilidade. Seria bom que, genericamente, a população tivesse acesso a estes serviços. Tem de ser viável viver em qualquer sítio deste País, em qualquer idade.
- O mesmo se passa com a ADM – Assistência Médica Militar e os hospitais militares. Tem sentido a manutenção de um hospital militar e ao mesmo tempo o financiamento de um subsistema para os militares recorrerem a serviços de saúde fora dele? Quantos militares usam os hospitais militares? O Estado tem de ter um hospital militar? Dir-se-á que a Europa toda tem. Certo, a Europa foi dizimada por duas guerras mundiais, já foi uma economia de guerra. Hoje se um militar português em missão internacional ficar ferido é tratado num hospital militar na Alemanha ou nos Estados Unidos, dependendo de onde está. Se ficar internado durante muito tempo o Estado bem pode levar lá a família. Regressado, deve ter prioridade de internamento e tratamento em qualquer hospital nacional. Quando estão fora de casa em missão, a sua família deve ser assistida prioritariamente. Os hospitais militares têm áreas de excelência em trauma e saúde mental? Se sim, ótimo, e, se não estamos em estado de guerra, poderão ser abertos à generalidade da população. Ou o hospital militar quanto a civis tem de ser reservado a altos quadros políticos e aos seus familiares? Uma das prioridades europeias no novo mandado de Ursula von der Leyen é o a criação de um fundo europeu de defesa, um mercado único para investir mais e em conjunto em capacidades topo de gama. É estender essa lógica a tudo. Portugal tem de deixar-se das quintinhas;
- A grande maioria dos discursos políticos é recorrente em duas coisas: a necessidade da imigração para a economia do país. Hoje temos mais de um milhão de imigrantes. As infraestruturas e o pessoal da saúde estão a ser adaptados a este aumento populacional?;
- E a importância do turismo para a economia nacional? A mesma pergunta, as infraestruturas e o pessoal da saúde estão a ser adaptados a esta aposta do país? Falamos sempre de muitíssimas mais pessoas para além da população residente.
- Durante anos a Ordem dos Médicos fez uma guerra à criação de cursos de medicina privados em Portugal, temendo “a qualidade do ensino”. Felizmente foram abrindo, mas este é um problema que tem de ser definitivamente arredado. Eu também adoraria não ter concorrência no meu trabalho.
Uma primeira nota para concordar com Pedro Nuno Santos e com Rui Rocha, o primeiro-ministro devia ter falado mais cedo. Ou então o Governo ter, como tem a Casa Branca, para dar um exemplo fácil de reconhecer, um secretário de imprensa que prestasse informações constantemente. Se estivesse grávida nesta altura, dormiria colada à CNN para saber que serviços de obstetrícia estão abertos; tendo crianças ou idosos na família estaria na mesma colada, para saber que urgências estão a funcionar, para onde posso viajar.
Posso ouvir na televisão, mas é o governo que tem de informar a população, acalmar a ansiedade.
Uma segunda nota para os privados, para além dos grupos de saúde, e para os governantes nacionais e locais: para os primeiros, a responsabilidade social e o mecenato são importantes, embora não caiba aos privados substituírem-se aos governos; para os segundos, os impostos são altíssimos e muito ineficientes e o mecenato é importante. Seria bom nesta área crucial, ou noutras, ver os privados entrarem no jogo (alguns já o farão). Empresários do calçado de Felgueiras, têxteis do Vale do Ave, produtores de vinhos, grupos hoteleiros, empreiteiros, techs, energia, madeiras e móveis, grandes cadeias de supermercados que estão espalhadas pelo país, Paula Amorim na Comporta, estes ou outros, manifestamente com poder económico, os hospitais ou centros de saúde das vossas terras podem precisar de equipamentos, um mamógrafo, sei lá, qualquer outra coisa.
2.Há uma certa obsessão com a juventude, quase comparável à de Silicon Valley. Pode ser inveja pelo facto de estar perto dos 50, já que é tudo para quem tem até 35 anos: isenções de IMT e de Imposto de Selo, garantias públicas na compra de casa, IRS jovem, cheques psicólogo e nutricionista, distribuição gratuita de produtos de higiene menstrual nas escolas… Até a Igualdade foi para à pasta da juventude, mas não são só as/os jovens que precisam de igualdade. De qualquer maneira, bravo Margarida Balseiro Lopes, a juventude não se pode queixar da ministra.
O Deloitte Gen Z and Millennial Survey 2024 concluiu que, pelo terceiro ano consecutivo, o custo de vida mantém-se como o principal motivo de preocupação entre a Geração Z e Millennials em Portugal. Nestas faixas etárias, 47% da Geração Z e 50% dos Millennials admitem dificuldades em suportar os gastos do dia a dia face aos custos atuais.
Numa perspetiva global, seis em cada 10 jovens (56% na Geração Z e 55% nos Millennials) admitem viver de salário em salário – um aumento de cinco e três pontos percentuais respetivamente, desde o ano passado. E cerca de três em cada dez afirmam não se sentirem financeiramente seguros.
Sem ter medo de falhar creio que é uma preocupação generalizada acima dos 35 também.
Entre as bem-vindas descidas de impostos para a juventude e a bem-vinda taxa única de IRS de 20%, para residentes não habituais para atrair estrangeiros e emigrantes portugueses com altas qualificações, cá estamos nós, portugueses acima dos 35 que vivemos e trabalhamos em Portugal a carregar com a oitava maior carga fiscal sobre o trabalho entre os países da OCDE em 2023,
A carga fiscal sobre um trabalhador com um salário médio (solteiro e sem filhos) foi de 42,3%, uma subida de 0,14 pontos percentuais. Se isto não é excessivo…
Considerando que temos um peso decisivo entre os eleitores e que não nos temos conseguido decidir maioritariamente pelos dois maiores partidos que costumam alternar no governo, talvez devêssemos ser tidos mais em conta. Somos como as personagens do Garcia Márquez que se cruzam todos os dias na cozinha sem se notarem e só quando um deles morre é que o outro sente a falta de o ver ali.
Itália acabou de duplicar um imposto fixo sobre o rendimento estrangeiro dos novos residentes porque o atual incentivo fiscal de 100 mil euros tem sido controverso entre os italianos, especialmente na capital empresarial, Milão, onde o recente influxo dos super-ricos tem sido responsabilizado por um aumento acentuado nos preços imobiliários e outros aumentos dos custos de vida. É perverso os nacionais deixarem de poder frequentar a sua própria cidade e o seu próprio país. Dostoievski dizia que fora do nosso país somos todos uma fantasia, caminhamos para que dentro do nosso país também.
3.Creio que ouvi o Ministro da Economia dizer que os beneficiários dos fundos europeus não podem ser sempre os mesmos. O maior escândalo neste campo é o facto de 48 dos maiores beneficiários dos fundos comunitários do PRR terem capitais públicos. Mas há outros, e socorro-me de uma lista de 2021 que não encontrei atualizada: há sete empresários portugueses no ranking europeu dos 25 maiores beneficiários finais de fundos Europeus e é interessante ver a quantidade de empresas através das quais esses beneficiários recebem os fundos. Quem trabalha, ou já viu, contratos de consórcio para, por exemplo, concorrer a fundos do PRR, não pode deixar de reparar que, em várias áreas, as quatro, cinco, seis primeiras empresas pertencem todas aos mesmos grupos. Nada contra os grandes grupos, e tudo a favor das PME que em grande parte constituem esses grupos de facto ou de direito. O setor privado representa 80% do emprego nacional e praticamente 100% do valor acrescentado da nossa economia. Os fundos europeus servem objetivos de desenvolvimento e coesão. É ótimo saber que os portugueses conseguem competir com os restantes europeus, a questão é, conseguem os portugueses competir entre si?
Há lobbies e assuntos que me preocupam com mulher, há lobbies e assuntos que me preocupam como cidadã. Não estão regulados, urgente, urgente!, e não deixam crescer outros. Luís Montenegro parece-me equipado para lidar com os últimos. Tendo saído António Costa e estando Marcelo Rebelo de Sousa de saída – Marcelo cujo filho mostrou na Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso gémeas ser o nec plus ultra do sistema – há um certo regime que pode estar a chegar ao fim. O primeiro-ministro, que faz política há muitos anos, não é um insider da clique predestinada e autoalimentada da capital. Está numa boa posição para ir deixando cair muitas capelas. Se não, nunca vamos sair do mesmo.