A seco, sem aviso, um raio cai na serra em Gondoriz e mata sessenta e oito cabras – leio no JN por entre as notícias do dia sobre a decisão do Tribunal Central de Instrução no caso Operação Marquês. O pastor, quarenta e tal anos de serra, sem perceber o que aconteceu aos animais, mortos ali mesmo, uma linha de cabras encostadas umas às outras, diz: “se morro eu, se calhar era mais fácil”. Sem explicação para dar a quem espera o regresso dos animais, espantado por ter ficado vivo, o pastor envergonha-se com uma culpa que não lhe cabe.
Esta é a nobreza da responsabilidade. Num pastor como num ministro. Jorge Coelho aceitou o ónus pela queda da ponte de Entre-os-Rios e demitiu-se do cargo de ministro do equipamento social, com uma frase que ficou célebre: “a culpa não pode morrer solteira”. Mas pode ou não? Precisamos que alguém nos explique que não.
A maioria dos portugueses não leu nem lerá as 6728 páginas do despacho sobre o processo Operação Marquês, agora divulgado. E à maioria dos portugueses não se exige saber interpretar estas mais de seis mil páginas. A clara clivagem entre este despacho e a acusação do Ministério Público, deixa-nos todas as dúvidas e as piores expectativas. Após sete anos e milhares de horas de trabalho pagas com o dinheiro dos contribuintes, os crimes da acusação não estão, de facto, sustentados em prova e são “especulação”, “fantasia”, “falta de lógica”? O entendimento legal do Juiz Ivo Rosa sobre a acusação será desacreditado em recurso? E de recurso em recurso, quantos mais anos passarão até ao desfecho final? E ao fim de quantos anos a justiça passa a injustiça? Enquanto esperamos as respostas, continuaremos a assistir ao aproveitamento político feito tanto pela extrema direita como pela extrema esquerda, em discursos populistas e judicialistas que incendiarão as redes sociais, polarizarão o debate e atomizarão o pensamento útil. E reforçar-se-á a perda de confiança e da credibilidade nas instituições que sustentam a democracia.
Quando olhamos para trás, há sempre a ideia de que houve uma idade de ouro, feita pelos nossos melhores. Ideia que confirmamos quando nos confrontamos com o vício na vida política. Mas talvez os nossos melhores, como o pastor de Gondoriz, ou Jorge Coelho, estejam próximos.
PS – resposta a Francisco Louçã
Caro Francisco Louçã,
Na sua crónica no Expresso Diário de 6 de Abril, referiu-se-me como “desembestada” e, no entanto, não me imagina de besta na mão a atirar contra si ou contra Cuba. Também não me terá visto a correr furiosamente. Isso significa que usou uma figura de estilo. Eu fiz o mesmo, como o senhor decerto sabe, como o sabe qualquer aluno do oitavo ano. Infelizmente, há muitas maneiras de matar e deixar morrer. Inclusive crianças. E a falta de assistência médica, ou de medicamentos, é só uma delas. E não, não acontece apenas nos “paraísos soviéticos”. Mas nas democracias não se branqueiam tragédias. Não vi, até hoje, o Partido Comunista pedir desculpa pelos crimes estalinistas ou pela tragédia dos Gulag.
Devo acrescentar que o texto que escreveu, tal como o seu “Momento Zen”, que está na origem deste bruáa, é enviesado e manipulador.
Termino com uma nota para seu esclarecimento: sou republicana e democrata. A extrema direita que vejo crescer, desgosta-me tanto quanto a extrema esquerda que vejo a reduzir-se.