“Vou a Lisboa para estar contigo e ver a Infanta!”, diz-me uma amiga ao telefone. E veio, numa manhã de convicto Outono, indiferente à chuva e ao vento. Ao almoço falamos como se montássemos conversas com peças lego, com a liberdade de não seguirmos instruções. Somos amigas há mais de vinte e cinco anos – temos muitas peças para juntar. O tempo passa depressa.

São horas da Infanta, quadro que faz parte da coleção do Museu do Prado e que está temporariamente no Museu Nacional de Arte Antiga. Chove ininterruptamente. Chegamos ao carro por entre poças de água e rajadas de vento que testam a perseverança. Não há muita gente no Museu. É rápido comprar os bilhetes e deixar o guarda-chuva com a funcionária que escreve um número no recibo: número nove, é o da etiqueta do chapéu, explica.

Ao fundo do corredor da ala da pintura Europeia, numa sala vermelha, centrado com a porta, está o quadro com o retrato da Infanta Isabel Clara Eugenia, filha de Filipe II de Espanha, I de Portugal. O quadro do século XVI, atribuído a Alonso Sánchez Coello, retrata a Infanta de corpo inteiro, magnífica com um vestido de seda branca bordado a ouro e joias. A sua mão esquerda está apoiada na cabeça da aia, Magdalena Ruiz, ajoelhada ao seu lado. A aia segura dois macaquinhos e uma medalha com uma imagem talvez do rei, ou como algumas teses defendem, a do seu falecido marido. Gosto mais desta hipótese. Reconhece uma vida para além da servidão. É a condição humana, ali emoldurada, em ouro e seda, preto e ocre.

Deixamos a Infanta. Numa das salas contíguas, à esquerda, uma rapariga de vestido verde com as mamas expostas, fixa-nos. É a Cortesã de Jacob Adriaensz Backer, uma rapariga de olhos cansados, mal dormida, cabelo fino, sorriso complexo. Segura uma moeda de ouro entre os dedos. Representa a mais bela cortesã da Grécia Antiga, Laís de Corinto, nascida na Sicília no século V a.c. e levada cativa para Corinto onde terá conquistado o poder pelos dotes amorosos. Outra infanta.  Outra história.

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Avisam-nos que o Museu está a fechar. São seis horas. Somos quase as últimas a chegar à recepção. Na caixa dos guarda-chuvas sobram três. Nenhum é o da minha amiga. Mostro o papel com o número manuscrito: nove. “É este!”, diz quem nos recebe. “Não, o meu tem o cabo de madeira“, responde a minha amiga. “Tem a certeza?” Percebo a vontade de transformar aquele no chapéu da minha amiga: mexe nos outros dois, revira as etiquetas, pede ajuda à colega que nos recebeu. Esta olha do outro lado do átrio e responde “As senhoras só traziam um chapéu!”. “Sim”, diz a minha amiga, “mas não este!” Mistério. “Só se alguém entregou o chapéu da senhora a outra pessoa… Isso não sei, cheguei agora. Vê lá na caixa das etiquetas. Ah, cá está, alguém deu o nove em vez do seis! Ah, assim solto não se percebe qual é o número!” No bingo, pensei, faz-se um risco para indicar a direcção em que o número deve ser lido. Desfeito o mistério avançamos para a solução: “então, se alguém levou o seu, leve a senhora este.”

“Não, não vou levar uma coisa que não é minha”, diz a minha amiga. Silêncio no átrio.

Vou ao carro trago outro chapéu. Dou o braço à minha amiga que desce a rampa lentamente, debilitada por uma doença a que tenta não ceder. Ambas rimos com as nossas circunstâncias de atestados multi-usos com mais ou menos percentagem de incapacidade. “Agora imagina que o nove em vez de ser no museu era no bloco operatório! Não estás feliz?”