A solidão é o pó (pegajoso) dos gestos que as pessoas têm para connosco. Com que nos demonstram que, por mais que nos amem, não alcançam as entrelinhas daquilo que somos. Não nos conhecem. E não apanham o jeito de gostar de nós. E talvez seja esse o lado mais desconcertante da solidão: ela é construída, peça a peça, pelas pessoas mais importantes para nós.
Às vezes, fala-se, com muito ênfase, da forma como a solidão se estará a transformar na grande pandemia do futuro. (E está!) Porque ela se alastra, fulgurante. Porque se estende e se aprofunda, independentemente das latitudes, das culturas e dos níveis sociais e económicos das pessoas. E porque parece passível dum arrepiante contágio. Tudo depois doutra pandemia com que, no furor dos confinamentos, descobrimos a importância daqueles que amamos. Para que, de seguida, qual droga que nos agarra, voltarmos a viver virados sobre nós próprios. Agitados. Ásperos. Zangados. Altivos. Intolerantes. Inflamáveis. Ou arrogantes. Sempre com a desculpa que temos vidas preenchidas e agitadas. Deixando nas entrelinhas a ideia que as pessoas que amamos merecem os restinhos residuais do nosso tempo e da nossa atenção. Como se, ao contrário daquilo que repetimos, não tivessem para nós a importância que, repetidamente, dizemos que merecem. Ao mesmo tempo que falamos, com vaidade, da forma como somos uma sociedade da comunicação. Na verdade, temos ao nosso dispor formas de comunicar em tempo real. Com som e imagem. E é fácil comunicar. Logo, a solidão não se faz porque tenhamos todos, hoje, vidas intensas. Essa explicação, muito egocêntrica, esquece-se da forma como os nossos antepassados tinham vidas mais violentas, muitíssimo mais carenciadas, menos educadas e com obstáculos — de mobilidade, de comunicação ou, até, pessoais — incomparavelmente mais agrestes e intransponíveis.
A solidão costura-se no silêncio. E devagarinho. Quando pessoas preciosas não reparam em nós. Ou, se reparam, se fecham no seu coração. Não manifestam curiosidade pelo que estamos a construir connosco mesmos, todos os dias. Não comparticipam nas nossas decisões e, quando muito, surgem para nos repreender pelas escolhas que fizemos. Não nos dão nem colo nem mimo. E não falam. Não falam daquilo que lhes damos a sentir. Do que esperam de nós. Ou do que as magoa em tudo o que fazemos. A solidão é assim: transforma pessoas que se conhecem em estranhos que se vão desconhecendo como mais ninguém.
A solidão existe porque, de forma doentia, acumulamos descuidos, desamparos e desinteresse para com quem é importante para nós. E lhes falhamos. Uma vez e mais outra. Muitas vezes! Mesmo quando dispomos de recursos e de instrumentos para lhes demonstrarmos que os conhecemos (melhor, até, do que elas se conhecem a si próprias). E, por isso, somos omissos. Mesmo que sejamos capazes de falar por elas e antecipar, em gestos, as respostas pelas quais mais anseiam, antes, ainda, delas as configurarem e de as “formatarem” em palavras. E engonhamos. E lhes demonstramos que, sendo importantes para nós, não serão tão indispensáveis para estarmos de bem com a vida e em paz connosco como, qual slogan, transformamos num pregão. E remetemo-nos a um: “ela sabe que gosto dela!…”. Mesmo que lhe demostremos que não sabemos gostar nem queremos aprender a gostar de si de forma a que ela o sinta. E num jeito que a acalente e lhe preencha a alma.
Por isso é curioso que falemos da solidão como a solidão… dos outros. A solidão nas grandes cidades. A solidão das minorias. Ou a solidão que o sofrimento humano aviva e acentua. A solidão das pessoas que se queixam, amiúde, dela, seja quando se sentem votadas ao abandono no casamento, pelos pais ou pelos filhos. E a solidão da velhice. Como se colhêssemos, de supetão, uma solidão para a qual não trabalhámos. Mesmo sem querer.
E, no entanto, muitos (mas, mesmo, muitos!!) de nós, continuamos distraídos por todos os apelos que chovem, em cascata, nos nossos dias. Distraídos pelas pessoas feias, agrestes ou horrorosas que se atravessam nos nossos dias e nos contaminam com a sua solidão porque a nossa luz acentua a sua inveja de lutarmos por aquilo de que elas desistiram e com que parecem conspurcar com sombras e escuro a nossa luz. Distraídos pela forma como há sempre pessoas que desconsideram o nosso esforço e o carinho com que trabalhamos e nos pespegam objectivos, criam climas laborais tensos ou paranoides e, ao mesmo tempo, nos enchem de traquitanas motivacionais e lideranças clonadas de quem leu um livro de psicologia positiva e descobriu que tem a luz dum coach. Distraídos. Distraídos. Distraídos! E, se for assim, atormentados…
Mas — não! — os déficits de atenção são um exclusivo dos alunos que saturamos com escola e mais escola quanto mais eles querem aprender, conviver, amar a vida e “adorarem” um professor… Não, a falta de saúde mental tem a ver com outros…Quase sempre, com os outros. Quase só com os outros… E, entretanto, de descuido em descuido, costuramos desamparos. De desamparo em desamparo, chegamos ao desinteresse. E de desinteresse em desinteresse à indiferença. Indiferença de confusão, de aceitarmos ficar amalgamados no mal dos outros. E indiferença de distração absoluta em relação a eles.
E, no entanto, a indiferença contamina e contagia. (Já repararam?…) Conspurca a forma como a nossa história — única e fabulosa — se acanha e se anula. E não se traduz numa sabedoria que traz massa crítica à vida dos outros. Atrofia a singularidade daquilo que sentimos, que se perde no labirinto dos dias e não nos deixa nem sermos transparentes nem espontâneos. E corrói aquilo em que pensamos — sempre novo; sempre fulgurante — que, por falta de palavras ou pelo acanhamento que nos impuserem sem querer, nos leva a sentir que fazemos todos parte da “multidão anónima” com que os apresentadores de televisão falam do “povo”. Das pessoas sem nome… Como se fôssemos uma ganga no lugar dum florescer que nunca se cansa.
A solidão faz-se, também — e muito! — de todos os “relaxa, respira fundo, ouve as ondas do mar ou a chuva a cair”. E de todos os “distrai-te e não penses mais nisso”. Desta necessidade de esvaziar a cabeça para se chegar a um bem estar “supremo”. De preferência, sozinho… Com a ajuda duma aplicação qualquer. Como se “limpar” o pensamento, não pensando nele, não fosse o que mais o conspurca e o abarrota de coisas com que ele adoece.
A solidão está a transformar-se numa pandemia porque nos deixamos que nos tratem como se não fossemos pessoas que sentem, que pensam e que intuem. Como se a inteligência artificial dos algoritmos fosse uma ameaça maior que esta inteligência artificial das banalidades com que maquilhamos as nossas omissões.
Por isto tudo, para que a solidão (e, já agora, a estupidez) não vença, precisamos de pôr as pessoas primeiro. Precisamos de lhes dar aquilo que queremos, também, que elas nos dêem. Precisamos de gestos. E de falar! Precisamos do brincar, da ironia e da festa. E precisamos de amar (desculpem!). Que é antídoto da solidão. Que, nos dias que correm, parece ser um tabu. Sem alma. Sem perspectiva. E sem amanhã.
E (há sempre um “e”!…) se tudo isto vos parecer um enfado, tenham cuidado: o enfado é a linguagem, com que a solidão, com pezinhos de lã, cresce e atordoa. Empurra para a saudade. E abalroa.