A Páscoa. Cerimónia santa que nos acompanha pela vida, encarnando a primavera luminosa, contraste vivo do Natal escuro e silencioso.
A meninice passada em roupas estreadas nesse domingo, em casa da bisavó, matriarca incondicional dum clã beirão.
Comida com fartura, os primos a brincar e a correr por corredores antigos, no compasso do ribombar dos foguetes que rebentam lá no alto, sobre flores, povoadas pelas abelhas do tio Adelino.
À hora certa, aparece a campainha, com o padre a dar a cruz a beijar a toda a família.
Lenga-lenga repetida até à exaustão por aquele grupo de visitantes anuais, dando às de vila-diogo, assim que o envelope recheado com o dinheiro para a paróquia lhes adorna a pasta do peditório.
Nesses tempos, saltava-se de casa em casa, de primos, tios, vizinhos, só para coleccionar beijos metálicos e frios a uma cruz adornada por flores de plástico. E fazer dessa colecção, desse amontoar de beijos sem retribuição uma grande coisa!
Assim foi até que o tempo, fatal, prestou contas à vida e levou a bisavó.
A família foi buscando outros sítios para celebrar a Páscoa, até assentar arraiais em casa de uma tia.
Sempre com os foguetes a estalar no alto, a toque da campainha, chega o padre e seu séquito, que mal entra, mal sai, com a cruz mais beijada e a pasta mais guarnecida.
Quando os padrinhos deixaram de fazer o folar e de presentear notas ou cheques, buscámos outras paróquias que nos animassem as noites ainda frias, de vésperas de Páscoa.
Na minha terra, a queima do Judas é evento solene, durante o qual, miraculosamente, nunca se viu chover, àquela hora tardia.
Os adolescentes, à volta da efígie do traidor supremo, dançam ao sabor de verdades musicalizadas que entretêm a população animada.
As labaredas e o fogo de artifício, algozes da curta vida de um judas que também ele ressuscita todos os anos, dão início à festa que se prolonga com música, cerveja, vinho e cigarros. Até nascer o dia, se dança e se canta e se diverte.
A Páscoa é assim um sagrado pretexto, para se voltar à terra, para se reencontrar com amigos, meter a conversa em dia, resumindo mais um ano que passa.
No domingo, comer. Sempre muito que comer. Abençoado cabrito beirão, filho da terra, sacrifício para uma festa que é nossa.
A alegria da Páscoa complementa-se com mais comida e vinho e a dor de cabeça filha de uma longa noite, cura-se miraculosamente.
A cada ano que passa, a sala fica maior, com mais lugares vazios e as rugas e os cabelos brancos surgem nas cabeças daqueles que pareciam sempre novos. Mas o padre sempre vem, sempre regressa, com o séquito de mordomos e a pasta do peditório. A cruz e os seus beijos frios e metálicos também. Agora já aprendido o truque de tocar com o nariz e fingir que se beija, escapam-se os beijos metálicos e frios. Os foguetes rebentam lá no alto.
Esta é a Páscoa. Onde a comida abunda e a alegria impera, num tempo renascido, onde se celebra uma ressurreição de amizades e laços familiares. De visitas anuais e estreias de roupas novas.
A Páscoa de rituais antigos e histórias novas para contar e partilhar.
Este ano, a Páscoa de sempre, vai ser uma Páscoa nova. Mais estreita, mais curta, mais solitária. Fica a sala ainda maior, ainda mais vazia, com os lugares de todos, marcados no mesmo sítio, para que no próximo ano, possam voltar os foguetes, a campainha, a cruz, a queima do Judas, os amigos de longa data, a mesa farta, as caras de sempre e a pasta do peditório.