No passado dia 25 de janeiro o Estado do Alabama utilizou pela primeira vez a asfixia por azoto como método de execução. Este mecanismo, que não tem qualquer utilização oficial registada no passado, foi o meio considerado mais apropriado para tirar a vida a Kenneth Eugene Smith, um homem de 58 anos que em 1988 matou uma mulher (Elizabeth Dorlene Sennett) depois de ter sido contratado pelo marido, que se suicidou de seguida, para o fazer. Smith foi condenado à morte em 1996; entre o conhecimento da pena e a sua efetivação passaram 28 anos, entre o momento da morte da vítima e o momento da morte do homicida decorreram 36 anos.

Começamos por notar que Kenneth Smith já tinha entrado no restrito grupo de condenados à morte que sobreviveram a uma tentativa de injeção letal – o método mais comum de execução nos EUA -, quando em novembro de 2022 a equipa responsável pela execução não conseguiu, depois de longos minutos, encontrar uma veia onde pudesse proceder à injeção antes de se esgotar o tempo concedido para a efetivação do mandato de execução, que tem duração limitada.

Depois de alguns meses em que o processo foi objeto de vários recursos, o Estado do Alabama decidiu, com caráter definitivo, avançar com a execução de Kenneth Smith através de um método previsto na lei, mas nunca testado em humanos: a execução através da asfixia por azoto. Na última hora possível a Governadora do Alabama, Kay Ivey, recusou o pedido de clemência; Kenneth Smith foi executado na tarde de 25 de janeiro de 2024.

Não importa fazer apreciações sobre a culpabilidade do homicida condenado; o crime em causa, que se considerou provado, é talvez o que mais reprovação e censura moral, social e jurídica merece, porque atenta contra o mais preciso dos bens jurídicos. Perante um crime que gera grave alarme social entre a população o Direito deve, naturalmente, afirmar-se de modo veemente, e quem o praticou deve, também, pagar duramente pelo que fez. Contudo, e se a pena de morte jamais deveria fazer parte das penas perpetradas por um Estado de Direito moderno e desenvolvido, muito menos no seio de uma democracia representativa (seja qual for o método utilizado), a pena de morte por asfixia através gás letal, efetivada de forma refletida, consciente e convicta pelas mãos da Justiça com o beneplácito do poder político e onde as testemunhas assistem à execução através do vidro como se de um filme de terror se tratasse consubstancia a negação de várias das conquistas que séculos de trabalho árduo conseguiram, no caminho para o nosso avanço e aperfeiçoamento coletivo enquanto civilização.

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A execução através de asfixia por azoto dividiu, mesmo nos EUA, as opiniões de quem sobre ela se pronunciou. Steve Marshall, Procurador-geral do Alabama disse, antes e depois da execução, que o método utilizado seria eficaz e provavelmente o “mais humano” de todos os possíveis. Por outro lado, várias organizações, advogados, médicos e grupos informais, criticaram a opção tomada pelo Alabama. Antes da execução, a Amnistia Internacional considerou que este método poderia ser enquadrado como tortura ou tratamento cruel ou degradante, proibidos à luz do Direito Internacional e de tratados que os próprios EUA ratificaram.

O tempo foi decorrendo e depois de vários Tribunais de diferentes níveis terem rejeitado recursos para suspender os efeitos da decisão e de o próprio US Supreme Court ter considerado, no dia anterior, que o Alabama tinha direito constitucional de o fazer, a execução de Kenneth Smith efetivou-se. A juíza Sonia Sottomayor, que juntamente com mais dois juízes votou vencido esta decisão, referiu que o “Alabama escolheu Smith para ser cobaia de um método de execução nunca antes utilizado”.

Nos dias que o precederam houve significativas dúvidas sobre a eventual eficácia do método. A Associação Americana de Medicina Veterinária veio notar que até em animais é desencorajada a utilização de azoto como método de eutanásia e a advogada Elena Kagan lembrou que o protocolo para utilização da asfixia por azoto foi desenvolvido recentemente, e que mais recentemente ainda estavam a decorrer revisões para garantir que o executado não morreria asfixiado no seu próprio vómito, em vez de ficar inconsciente poucos segundos depois de respirar o gás mortal.

No dia da execução, aquilo a que assistiram alguns jornalistas na sala adjacente, e o próprio conselheiro espiritual do executado que se encontrava dentro da sala de execução, demonstra que o processo não decorreu como as entidades oficiais do Estado do Alabama tinham previsto. Foi colocada uma máscara que emitiria o gás no rosto do condenado, que imediatamente a seguir a ter proferido as últimas palavras ter-se-á começado a abanar violentamente contra a estrutura que o segurava e lhe limitava os movimentos, processo que durou vários minutos. Há relatos, também, da respiração ofegante e ruidosa e de, alguns minutos depois, a máscara encher-se de vómito e outras matérias que os jornalistas não conseguiram identificar. Lee Hedgepeth garante que foi a execução “mais violenta que testemunhou” e Jeff Hood afirma que o executado demorou “vários e longos minutos” até ficar inconsciente, ao contrários dos breves segundos que tinham sido previstos. O gás começou a ser emitido às 19:53h (hora local) e ao contrário do que tinha sido previsto, o óbito do condenado só foi declarado às 20:25h.

Para censurar e castigar grave e severamente o autor de um crime monstruoso o Estado não necessita de o gasear com azoto, provocando-lhe a morte através da asfixia no próprio vómito. Também não me parece válido o argumento de que tal pena, ainda assim, não infligiu sofrimento semelhante àquele que o executado terá causado à sua vítima; mesmo que isso seja verdade – e no caso de Kenneth Smith poderá eventualmente sê-lo -, o Estado não pode existir e afirmar-se através da mesma lógica que o criminoso se afirmou perante a vítima. O Estado e as suas instituições devem colocar-se num patamar distinto, imune à expressão de ódios ou raivas, permitindo que a mão dura e certeira da Justiça caia onde deve cair, no momento e da forma corretas. A manutenção da pena de morte em Estados de Direito desenvolvidos é uma manifestação arcaica intolerável; os argumentos contra a sua efetivação são inúmeros e através dela o Estado aceita colocar-se a um nível semelhante ao dos criminosos a quem justamente confiamos a responsabilidade de punir.

Considero muito infeliz termos de reconhecer razoabilidade e lucidez ao próprio Kenneth Smith, que nas últimas palavras que pôde proferir antes do gás ser ligado disse que “Esta noite o Alabama faz com que a Humanidade dê um passo atrás”. Kenneth Smith tem razão em dizê-lo e um Estado de Direito desenvolvido não pode permitir que o autor confesso de um dos mais graves e condenáveis crimes previstos por qualquer ordenamento jurídico tenha razão nas últimas palavras que profere.