Qualquer guerra é também uma guerra de comunicação, mas mais o vem sendo desde que as fontes e formas de informação são em maior número e possibilitam trocas e contactos mais rápidos e em maior escala. A frenética radicalização das posições a que temos assistido obriga a que tentemos convencer quem está fisicamente longe de um conflito ou outra realidade de que a responsabilidade, a culpa e os atos mais bárbaros são cometidos pela outra parte, que está sempre irremediavelmente errada, contra a nossa facção, que só raramente pode perder a razão.

A verdade, a mentira e a busca, no mínimo tentada, pelo seu esclarecimento são conceitos ultrapassados; o que importa é fazer circular uma informação, se possível curta, chocante e gráfica, capaz de fazer crer a audiência de que o lado contrário daquele em que estamos massacrou, matou, raptou, destruiu ou enganou. Se é verdade ou mentira, cabe ao espectador descobrir – e sabemos que em muitos o casos o espectador não o pretende fazer, já que se avançar nessa busca poderá ser obrigado a escolher entre a verdade e aquilo em que prefere acreditar.

A plataforma X (antigo Twitter) é um dos lugares prediletos para este tipo de posicionamentos. Há várias caraterísticas íntrinsecas à plataforma que concorrem eficazmente para exacerbar as atuais posturas de reatividade imediata e certezas cegas a que temos assistido. A sua aquisição por Elon Musk foi, na minha perspetiva, mais um passo nesse caminho, que agora tem novas consequências. O dono da Tesla e SpaceX anunciou em vários momentos, antes e depois da compra, a sua vontade de criar um espaço free speech quase absoluto e onde pudesse existir “um confronto de opiniões contraditórias”, suavizando as ferramentas de moderação da plataforma que, apesar de por vezes poderem ser impertinentes, conseguem, ou conseguiam, identificar e limitar contas falsas ou contas fantasma.

Um dos passos dados neste sentido foi a nova política de contas verificadas. Desde 20 de abril de 2023, todas as contas que tinham sido verificadas pelo antigo método deixaram de o ser e qualquer utilizador passou, na verdade, a poder ter uma conta verificada, passando assim a ser possível um eventual sonho de alguns de ver a sua credibilidade e exposição pretensamente crescentes e um não despiciendo maior alcance nos posts publicados. No específico ecossistema das redes sociais, uma conta verificada, seja em que plataforma for, tem sido sinónimo de (alguma) credibilidade, pelo menos ex ante. Atletas, artistas, políticos, organizações internacionais, jornalistas e outros eram, normalmente, quem podia ver um pedido de conta verificada ser aprovada pela plataforma, segundo um processo de verificação com base em critérios de “autenticidade, notabilidade e atividade”.

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A partir de dia 20 de abril este processo passou a constituir um serviço: a aparência de credibilidade está agora à venda por 7,29€/mês, acessível a qualquer utilizador. Como referimos, em adição ao mero símbolo azul, as contas verificadas têm acesso, também, a uma potenciação algorítmica dos seus posts – apesar de a plataforma não revelar quais são, exatamente, os contornos dessa maior exposição, a NewsGuard identificou-os como “significativos”.

Esta mudança introduzida pela liderança de Elon Musk levanta problemas e é mais uma possível contribuição para a guerra de desinformação que ganha espaço na plataforma. Qualquer utilizador tem agora a possibilidade de pagar esse valor relativamente simbólico; de seguida pode, por exemplo, e num cenário hipotético, alterar a foto e colocar na descrição do seu perfil que é um jornalista certificado ou político eleito a cobrir determinado evento, conseguindo assim um maior alcance e equiparando-se a uma fonte de informação mais respeitável e credível do que na realidade é. Além de carros e viagens ao espaço, Elon Musk passou a vender credibilidade.

Vejamos, rapidamente, como este estado de coisas se relaciona com o conflito árabe. Um estudo da NewsGuard concluiu que os utilizadores verificados – os que pagaram em troca da tal estrela azul – produziram, no período de 7 a 14 de outubro, 74% das fake news e informações infundadas sobre o conflito Israel-Hamas que circularam na plataforma X nessa referida primeira semana.

No período em causa, a NewsGuard analisou os 250 posts com mais engajamento (“likes, reposts and replies”) que promoveram qualquer uma das 10 mais proeminentemente falsas narrativas sobre a guerra, partilhadas nessa plataforma. Desses 250 posts, 186 terão sido postados por contas verificadas (74%). Cumulativamente, as publicações que avançaram os referidos mitos e mentiras receberam mais de 1.3 milhões de engajamentos e terão sido vistas mais de 100 milhões de vezes em apenas uma semana.

Segundo a NewsGuard, as 10 mais proeminentemente falsas ou insubstanciadas narrativas partilhadas na plataforma X foram as seguintes:

  • A Ucrânia vendeu armas ao Hamas;
  • Israel matou 33 000 crianças palestinianas desde 2008;
  • Um vídeo mostra crianças israelitas ou palestinianas em jaulas;
  • Um vídeo mostra altos funcionários israelitas capturados pelo Hamas;
  • A Igreja Ortodoxa de São Porfírio, em Gaza, foi destruída por bombardeamentos israelitas;
  • Um vídeo mostra combatentes do Hamas a celebrar o rapto de uma criança israelita;
  • A CNN exibiu imagens da sua equipa de reportagem sob ataque em Israel;
  • Um memorando da Casa Branca mostra que os EUA aprovaram 8 biliões de dólares para ajudar Israel;
  • Israel encenou imagens que mostram a morte de uma criança morta por um ataque do Hamas;
  • O ataque terrorista do Hamas foi uma “bandeira falsa” levada a cabo por Israel ou pelo Ocidente.

Sem deixar de considerar as inesperadas vantagens que trouxeram, as redes sociais, e em concreto o X (antigo Twitter), pelas suas especiais caraterísticas, tornam muito mais complexa a tarefa de conseguir discernir a verdade da mentira e o conflito Israel-Hamas é disso prova, novamente. Qualquer pessoa pode tornar-se utilizador da plataforma e espalhar vídeos, imagens ou declarações cuja falta de credibilidade só é diagnosticada – quando o é – depois de ter sido exposta a no mínimo milhares e no máximo milhões de pessoas, aumentando ainda mais esta nossa sede por uma reatividade imediata e mecânica em relação às causas que queremos defender e que não pode, logicamente, deixar espaço ou tempo para a reflexão ou ponderação. Por vezes, o melhor a fazer é mesmo não partilhar nem retweetar.