No nosso novo mundo, hiper-materializado, globalizado, ultra-conectado, ser-se útil à sociedade talvez seja a principal virtude que sobra ao homem contemporâneo. Ser útil, entenda-se, traduz-se pelo conforto e conveniência oferecida, não à família ou aos vizinhos, mas directamente ao mundo globalizado, através de infinitos serviços prestados, cada vez mais, de forma remota, solitária, pela internet. No final, incluindo-se ainda o escapismo e o entretenimento nessa categoria de “utilidade social” — tal como actores e futebolistas providenciam face ao tédio da rotina mecânica do dia-a-dia —, quem mais contribuir com utilidade para o colectivo, mais recebe a recompensa, no caso pecuniária, ou pelo menos assim gostamos todos de acreditar que seja.
Desta forma, grosso modo, a educação das novas gerações reduziu-se progressivamente à maximização da utilidade social de cada indivíduo, tarefa da qual o Estado, pressurosamente, ao longo de anos de apurada especialização, se ocupa com direito de exclusividade. Os infantes vão, então, à escola com currículo certificado, carimbado e verificado pelo Estado — um direito constitucional, universal e obrigatório —, fundamentalmente, para encontrar um lugar onde servir o magno valor da utilidade social nessa intrincada colmeia de cibernética e mecânica, serviços e engenharia, propaganda e consumo que compõe o mundo moderno.
O homem contemporâneo passa, portanto, na maior parte dos casos, a partir dos seis anos de idade, entre 12 e 20 anos a “educar-se”, sustentado pela família, mas, dada a complexidade da tarefa, sempre nas mãos seguras e infalíveis do Estado, num crescendo de, primeiro, “multi-disciplinaridade”, depois, especialização e, finalmente, ultra-especialização. A par, esta estandardização, no contexto da democracia liberal Ocidental, respeitou, em crescendo, o princípio da neutralidade moral do Estado: ou seja, a “educação”, mesmo que cada vez mais medíocre, não deixou de ser também o berço da sociedade verdadeiramente secular.
No entanto, nos últimos anos, algo mudou. A reboque da grande evocação da libertação individual por parte do Estado face ao mundo velho e bafiento pré-moderno e pré-tecnológico, são agora as crianças também instruídas numa nova moral que, substituindo a defunta “Religião e Moral”, inverteu o sentido da secularização, trazendo de volta uma componente “moral” para o currículo. Hoje, na escola “segura” e “inclusiva” instrui-se também o “educando” na forma como a boa-sociedade deve ser constituída, como as pessoas deverão, ou poderão, relacionar-se entre si, incluindo nas temáticas do sexo, sendo mesmo a última novidade a da auto-assumida responsabilidade estatal para ajudar a criança pré-adolescente a “descobrir” a sua “identidade de género”.
Numa crescente fluidez de identificação que, inclusive, tornou distúrbios e perturbações psiquiátricas em supostas formas de identidade pessoal pós-modernas — andróginas, assexuadas, não-binárias, artificialmente castradas e cirurgicamente mutiladas —, tudo misturado numa caldeirada de meras aparências, em nome da máxima libertação individualista prometida pelo pós-liberalismo, e com legislação que permite agora ao burocrata escolar substituir a família interferindo directamente na intimidade das crianças, vende-se nos dias de hoje aos infantes uma mentirosa transcendência face ao género, ao sexo, à biologia e, claro está, de caminho, ao proverbial bom-senso.
A par, por exemplo, também nas escolas, associações de minorias LGBT — mesmo que estas em nada sejam perseguidas, hoje possam casar entre si e, inclusive, tenham já o “direito” a adoptar crianças livremente —, em nome da opressão atroz de que se imaginam alvo, recebem avultados apoios estatais — que, desse modo, pervertem abertamente o princípio liberal da neutralidade do Estado face aos valores e costumes sociais e morais — e, através de professores “activistas”, em nome da “liberdade”, “igualdade” e “fraternidade”, exortam as crianças a dissertar sobre as virtudes da homossexualidade enquanto, a mando, acenam bandeirinhas arco-íris, um símbolo do imaginário infantil, inocente, pré-pubescente, agora apropriado para um novo significado — adulto, íntimo, intrinsecamente sexual.
Mas não é apenas na escola. Hoje, a produção cultural dominante assume-se também desse modo simultaneamente moralista e revolucionário, sempre reactivo face a uma suposta opressão histórica que a sociedade alegadamente exerce sobre as mentes e os corações de minorias — ou, pelo menos, das associações que as dizem representar — e que, em nome da boa sociedade, e o correspondente critério moral, urge “libertar”. Às minorias de orientação sexual somam-se agora também as raciais e as de género, bem como as de deficientes, de determinadas religiões ou culturas, diferentes critérios de peso ou altura. Restará, no entanto, aos mais cínicos, a dúvida sobre como poderá o “minoritário” — na raça, no sexo, na orientação sexual, etc. — ser assim tão oprimido socialmente quando, desde logo, de forma transversal, culturalmente, obtém uma representação constante, normalmente positiva, em muitos casos exagerada em número face à realidade, e isto não apenas na produção audiovisual, mas, também, nas redacções e nas escolas que celebram, em seu nome, a “diversidade” e a “inclusividade” como os novos valores sociais a serem adoptados por todos.
Assim sendo, afinal, a opressão exerce-se como? Através da hiper-representação dos alegadamente oprimidos na TV? Da igualdade de todos perante a lei? Pela sociedade que mais direitos, liberdades e garantias atribuiu a todos os indivíduos, sem excepção? Pela civilização mais tolerante, inclusiva e moralmente permissiva da história da Humanidade? Depois, pelo caminho, em nome da harmonia social, paradoxalmente, ocupam-se os representantes da indignação a dividir, separar, desunir e semear a discórdia entre diferentes indivíduos que ora encaixam num rótulo ora no outro, tudo separando em função do sexo, da raça, da orientação sexual, do peso ou outra qualquer forma de identificação individual alegadamente oprimida por uma invisível “maioria” composta de minorias. Não obstante, a par da exaltação frenética das “minorias”, aparece também a contraparte onde os activistas se entretêm a vergastar as costas larguíssimas da maioria que, caricaturalmente, acaba representada como um obeso homem branco que acende charutos com notas de cem, caricatura dentro da qual cabem todos os outros, os não eleitos à condição de oprimidos, os não-minoritários, uma enorme mole de indivíduos que apenas por existir merece os mais variados epítetos, desde o tradicional “fascista” às novidades do nosso tempo — “xenófobos”, “racistas”, “misóginos”, “deploráveis”, etc., etc..
Ao mesmo tempo, os membros das minorias, na maior parte dos casos sem que o tivessem pedido ou desejado, ao invés de celebrarem em paz o facto de, na indiferença social, como indivíduos completos que não se definem apenas por um particular aspecto da sua personalidade, viverem em igualdade plena com todos os outros, vêem-se agora, pelas mãos da propaganda social e cultural dos activistas, enfiados com um rótulo de “minoria” na testa, separados, diferenciados, mesmo que, supostamente, em “seu nome” e no seu interesse. Na realidade, no cerne deste conflito identitário, está o elefante no meio da sala: tirando os activistas manipuladores que fizeram vida acicatando divisões entre maiorias e minorias, ninguém, nem as maiorias nem a grande parte das alegadas minorias, se revê, ou preocupa, grandemente com a luta por uma sociedade organizada em função das diferenças de cada um, muito pelo contrário. No entanto, essa nova sociedade, desde logo a partir da escola, move-se — e impõe-se.
Mais. Nos últimos anos, para perplexidade de muitos, as grandes corporações compraram a mesma narrativa moral, sexual, identitária e alegadamente ultra- libertadora dos activistas. Por todo o lado esvoaçam as bandeirinhas com o arco-íris, incluindo nas embaixadas e demais edifícios governamentais e institucionais dos países Ocidentais, fazendo uma estranha combinação, uníssona, clara, avassaladora, entre mega-corporações de expressão global e os Estados nacionais e supra-nacionais que governam o Ocidente. Desde as já referidas gigantes dos audiovisuais, às igualmente gigantes da banca, da indústria, do vestuário, da alimentação, da academia e da alta-finança, alavancados na harmonização moralista do ESG, esta bizarra aliança entre corporações e Estados promete, assim, o advento da verdadeira harmonia social, bem como da “dignidade”, da “igualdade” e, claro está, da “felicidade”, tudo alicerçado nesta nova moral inventada pelas mentes ultra-radicais do pós-modernismo e hoje regurgitada pelos gramofones activistas da extrema- esquerda.
Sobra, no entanto, um mistério que tem escapado à análise da maioria dos “especialistas”. Que ganham, afinal, os políticos em assumir discursos ultra-radicais — vejam-se os democratas nos EUA ou os liberais no Canadá —, claramente contra a maioria dos seus próprios concidadãos, em nome de activistas fanáticos? Ou, do mesmo modo, que ganham as grandes corporações (capitalistas) em alinhar política e culturalmente com os seus maiores detractores (anti-capitalistas)? E que estranho novo mundo é este onde os poderosos globais, sejam corporações, sejam ONG, ou sejam entidades governamentais, falam a uma só voz, ainda para mais a uma voz que ecoa uma nova e revolucionária moral propagandeada até há poucos anos apenas por uma ridícula minoria ultra-radical?
A resposta para esse mistério residirá, talvez, em 2011 e nos movimentos radicais de extrema-esquerda norte-americana que, em nome dos 99% de gente comum, contra o 1% que alegavam comandar os destinos do mundo, em particular da banca e do sistema financeiro, ocuparam Wall Street durante 59 dias. A partir daí, os grandes poderes da finança global que acabara de exigir, para salvação do sistema financeiro internacional, que os contribuintes pagassem a fatura da falência de 2008, perceberam duas coisas: primeiro, que se adoptassem as bandeiras morais da extrema-esquerda transformariam aqueles que estavam prontos para fazer a revolução na guarda avançada defensora do próprio sistema. Hoje, no maior golpe de asa político do nosso tempo, o grande capital colocou o activista revolucionário, aquele que perora contra a banca e a economia de casino, feito idiota útil, sem se aperceber, a repetir exactamente os mesmos slogans que esse grande capital, essa grande finança e os grandes media lhe dizem para repetir. A título de exemplo, veja-se o afinco com que a extrema-esquerda defendeu ainda agora as grandes farmacêuticas (e os seus triliões de lucro a expensas de um estado de emergência) como as salvadoras do mundo — sem pestanejar uma dúvida.
Depois, as grandes corporações perceberam outra coisa, algo que tinham em comum com os neo-marxistas: é que um mercado ultra regulado, pejado de obrigações e fecundo em altos impostos, garante-lhes a ausência de concorrência, isto ao mesmo tempo que uma sociedade de consumidores desenraizados, atomizados entre si, ou seja, profundamente divididos, isolados, desprotegidos, são presa mais fácil para as cada vez mais agressivas campanhas de marketing. Ou seja, tal como os neo-marxistas assumiram que era a família o alvo a abater para que conseguissem doutrinar os indivíduos através do controlo cultural, “libertando-os” da anterior moral “capitalista” e “burguesa”, também os grandes poderosos do início do Século XXI compreenderam que era atacando a família e manipulando a produção cultural que, a tempo, se obteria o consumidor ideal: desenraizado, insatisfeito, pouco profundo, facilmente manipulável, infantil, ultra-materialista, mimado, viciado na última novidade, permanentemente perdido na busca incessante pela satisfação imediata através do consumo, seja este de bens materiais ou, também, simples injecções de dopamina geradas pelos numerozinhos encarnados que saltitam no ecrã de um telemóvel anunciando notificações.
Desde aí, em poucos anos, a narrativa acelerou. As instituições basilares da nossa civilização foram progressivamente corrompidas, tudo em nome desta hipócrita nova “moral”: desde logo, as instituições que deixaram de representar a sociedade como um todo para passarem a representar interesses particulares que apenas colocaram em causa a harmonia da sociedade, polarizando-a; depois, os princípios fundadores das nossas democracias liberais que foram pervertidos para significar o seu exacto contrário — veja-se como as quotas sociais são absolutamente incompatíveis com o princípio fundamental, e fundacional, da igualdade de todos perante a lei; e, finalmente, a mando do soundbyte do momento criado por medias corruptos e falidos — quer financeira, quer moralmente —, aparece hoje o Estado “liberal” a abdicar da igualmente fundamental neutralidade face a costumes e morais sociais para avançar, agora com força de lei, a doutrinação ideológica e moral das crianças, desde o berço escolar, durante os tais 12 a 20 anos em que as “educa” para serem peças úteis e consumidores perfeitos.
Ao mesmo tempo que os currículos degeneram numa crescente e abjecta estupidificação dos nossos filhos, a instrumentalização moral imposta pela doutrina do politicamente correcto, porque sendo moral, não permite dissensão. Assim, a cada momento gera inevitavelmente uma nova resposta moral, sempre uníssona, sempre subserviente aos “poderes que são”, desde as corporações, passando pelos activistas, terminando na sala de aula e nos manuais escolares. Deste modo, de uma nova moral que, numa sociedade crescentemente atomizada e desenraizada, divide para reinar, parte-se constantemente para uma resposta única a cada desafio — assim foi na pandemia, depois na guerra, agora numa absurda emergência climática, sempre com uma posição “certa”, “científica”, logo moral, regurgitada por todo o lado, desde a escola à estrela de cinema, do Telejornal à publicidade corporativa. Naturalmente, essa posição é também aquela que mais demonstra esta “perversa aliança” entre o discurso da extrema-esquerda e os interesses do “grande capital”. Neste aspecto, o mundo novo é, de facto, admirável — e surpreendente.
Como, em menos de 10 anos, apareceu, a martelo pneumático, toda uma nova geração de académicos, cientistas, jornalistas, políticos e influencers que, hoje, sem sequer nisso notarem, com orgulho e vaidade idiótica, desde a extrema-esquerda até grande parte da direita, em uníssono, se habituaram a arrotar a narrativa “moralmente correcta” do momento não deixa de ser, simultaneamente, extraordinário e revelador: extraordinário, porque será feito único na história da nossa civilização; revelador, porque mostra que por trás de todos os discursos, promessas, virtuosas proclamações de independência e rebeldia, por toda a sociedade, desde o revolucionário de iPhone na mão e All Stars nos pés até ao ministro da propaganda, continua impante a redução da virtude social dos nossos dias ao valor da utilidade — por trás da cortina de fumo, nos bastidores da charada, enquanto se destrói a civilização, vai triunfando, de cima para baixo, esse utilitarismo amoral que, numa sociedade hiper-materialista, travestido de virtude moralista, se revela, afinal, pelo vergar do mundo inteiro, incluindo o moral, ao poder de quem detém, domina e controla o bem simultaneamente mais “útil” e “material” de todos — o dinheiro.
Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.