Os últimos dias têm sido marcados pelos encerramentos das urgências de obstetrícia em muitos hospitais de norte a sul do país. O debate em torno desta questão tem-se debruçado sobre o investimento no Serviço Nacional de Saúde, a política remuneratória dos médicos bem como a migração destes profissionais do sistema público para o sistema privado.

A diminuição da cobertura dos cidadãos por médico de família tem vindo, frequentemente, à discussão enquanto exemplo demonstrativo da falta de política de investimento em infraestruturas, equipamentos e em recursos humanos.

Sempre que este debate possibilita a contradição, o aumento do número de cidadãos sem médico de família é explicado pelo aumento do número de utentes inscritos por causa da pandemia. E a discussão encerra por aí, pois desconhecem-se quanto desta situação é explicada quer pelas novas inscrições, quer pela diminuição da cobertura.

Em maio de 2022, sendo estes os últimos dados disponíveis do Portal da Transparência, existiam em Portugal 10.5 milhões de utentes inscritos, dos quais 1.3 milhões de portugueses sem médico de família e 9.1 milhões de utentes com médico de família atribuído.

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Se recuarmos a janeiro de 2020, período pré-pandemia, o número de utentes inscritos era de 10.3 milhões. Existiam 770 mil utentes sem médico de família e o número de cidadãos com médico de família atribuído era de 9.5 milhões.

A tabela sintetiza os dados disponíveis, de forma a tornar clara a sua leitura.


Com base nesta informação, podem retirar-se as seguintes conclusões:

  • Existem hoje mais 600 mil utentes sem médico de família atribuído do que existiam em janeiro de 2020;
  • Destes, cerca de 200 mil (35%) referem-se a novos utentes inscritos em centros de saúde;
  • Os restantes 400 mil utentes (65%), referem-se a utentes que tinham médico de família e que deixaram de o ter neste período.

Por este motivo, não é correto afirmar-se que o aumento do número de utentes sem médico de família seja atribuído, exclusivamente, às novas inscrições em centros de saúde.

Pelo contrário, ao longo dos últimos meses, o Serviço Nacional de Saúde não apenas viu 400 mil cidadãos que tinham médico de família a perdê-lo, como o aumento de recursos humanos foi insuficiente para assegurar um médico de família para os 200 mil novos cidadãos que se inscreveram.

Muitas vezes tende-se a esquecer que cada um destes números representa uma pessoa. Mais concretamente, estes valores representam 1.3 milhões de portugueses a quem é referido, frequentemente, que os Centros de Saúde são a porta de entrada no sistema de saúde, mas que, por mais que procurem, não têm porta onde bater.

Espera-se que esta informação possa contribuir para a discussão séria dos desafios que o Serviço Nacional de Saúde enfrenta e que a todos nos devem preocupar.