Marcelo Rebelo de Sousa sempre foi uma figura simpática do povo português. Desde o mergulho no Tejo na campanha eleitoral para as autárquicas em 1989, até ao comentário em prime-time aos domingos, na TVI, durante 15 anos, em que atingiu um impressionante share médio de 30% de audiência, Marcelo criou um estilo, um legado que chegou a toda a gente. Os seus comentários acutilantes e as críticas (aparentemente) assertivas numa linguagem acessível, descomplicada, humanizada e com toques de humor, democratizaram o comentário político ao patamar do agora conhecido como info-entertainment.
Ora Marcelo, que é um homem perspicaz, percebeu que se trouxesse ao lugar cinzento da Presidência da República o mesmo que trouxe ao comentário político, poderia ficar nos anais da história como o tal “Presidente dos Afetos” como já o intitulam. Assim, enjeitou o formato de presidência aberta (à la Mário Soares), mas inaugurou um estilo de presidência aberta permanente, em formato de life show. Com selfies e comentário diário sobre atualidade política, social e até desportiva, com uma agenda mediática nunca antes imaginada para uma figura política de um cargo não executivo. Fez um pacto com o diabo e levou a geringonça e António Costa ao colo durante sete anos para fazer perdurar a sua supremacia e ganhar balanço para o seu segundo mandato, com o natural apoio do PS de Costa, que teve até o desplante de anunciar a sua candidatura ao segundo mandato antes do próprio. Ao fazer este caminho tirou inevitavelmente o tapete à oposição, tornando-a inerte e abrindo espaço às novas direitas que provêm do descontentamento da hegemonia de 48 anos de governação do bloco central (PS, PSD e o quase extinto CDS), sem crescimento económico (há 22 anos) e com alterações sociais inevitáveis resultantes disso.
Com a direita em transformação, e apesar do desgaste com a geringonça e de uma campanha errática, António Costa, contra a maioria das expectativas (e das empresas de sondagem) ganhou a maioria absoluta nas legislativas com que agora governa. Marcelo ficou então refém da sua estratégia: o governo PS passou a sobreviver não graças à sua permissão e boa vontade, mas sim legitimado por 41% dos votos dos portugueses. E assim se inverteram os papéis: Marcelo é agora refém do Governo de António Costa e a sua supremacia já não pode ser facilmente exercida. Esgotou-se o espaço para o contrapoder, que agora seria extemporâneo e sem sentido. Quanto à ‘bomba atómica’ da dissolução da Assembleia da República, Marcelo já mostrou que não é Jorge Sampaio, pelo que tal só se colocaria se acontecesse algo muito mais grave do que os incêndios de Pedrógão, um atropelamento com um ministro envolvido, um ministro desautorizado, o caos no SNS ou vários casos de nepotismo envolvendo governantes. Tudo isto e muito mais já os governos de António Costa demonstraram saber ultrapassar com ligeireza, com a complacência dos portugueses e com o beneplácito do próprio Presidente Marcelo.
Mas se Marcelo é perspicaz, António Costa é o G.O.A.T. da perspicácia. Ao recente infeliz comentário das vítimas de violação pela igreja católica por parte de Marcelo, António Costa não hesitou em defendê-lo em público, dando assim a estocada final para a sua completa submissão. Marcelo como Presidente da República está acabado. A estratégia virou-se contra ele, como aconteceu quando rejeitou a nova AD juntamente com Paulo Portas, obrigando-o à demissão do PSD no já longínquo ano de 1996.
Este período da história de Marcelo e de Costa ficará marcado como o princípio do fim do Bloco Central: PS e PSD deixarão a médio prazo de ter o exclusivo da hegemonia governativa em alternância por ciclos políticos. Passarão a vigorar as alianças, previamente negociadas, entre diferentes forças políticas, algumas delas novas e antagónicas entre si, como se passa atualmente, por exemplo, na Alemanha. Costa e Marcelo ficarão conhecidos como os catalisadores, cada um à sua maneira, desta nova era da organização política nacional.