O senhor que me vende o pão parece carregar o mundo às costas: ombros contraídos, dorso vergado. Olhar perdido, como quem não sabe o que lhe aconteceu. A tabacaria da esquina, essa, a da velha senhora Leonie, nem sequer abriu. Talvez a tenham assaltado durante a noite memórias de criança, que ainda guarda num qualquer lugar escuro, há muito julgado perdido.

As ruas estão vazias, cheias de medo. Os poucos que as cruzam vão a passo acelerado, não com pressa de chegar a lado algum, apenas com urgência em sair dali. Percorro melancólico a paisagem da vila francesa que há anos me acolhe, às portas de Genebra, e tento descortinar o temor que a preenche. Afinal de contas, estive quanto tempo a dormir?

A Europa acordou hoje de ressaca, após uma longa noite de loucuras em que a virgindade foi perdida algures, abruptamente. Adormeceu na Terra do Nunca e deu por si a despertar atrás das linhas do inimigo, em território subitamente desconhecido e ameaçador. Aos poucos e a custo, vai-se livrando do torpor matinal, tomando consciência de onde está e acendendo luzes que a ajudem a interpretar e compreender a nova realidade.

Se dúvidas houvesse, é agora evidente que o atentado ao Charlie Hebdo não foi um caso isolado, mas o episódio piloto de uma série que está apenas a começar. A consciência, confirmada, da vulnerabilidade europeia, é neste momento clara, incontestável e arrasadora. Nada será como dantes. É preciso começar do zero, sobre um novo chão.

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Torna-se cada vez mais incontornável levar a cabo uma intervenção militar concertada e em grande escala contra o ISIS. Mas este é apenas o passo evidente. A parte da equação mais difícil de resolver, mas que não pode mais ser protelada, é a de como controlar os membros do grupo que já se encontram na Europa, aqueles que levam a cabo os atentados, e evitar que estes se multipliquem. E aqui esbarramos com a delicada questão dos refugiados. Sabe-se agora que um dos terroristas entrou na Europa como refugiado, em outubro passado, pela Grécia. Como este, quantos mais não irão ainda entrar? E quantos atentados não teremos já viabilizado?

Para quem ainda vive no mito de que o Islão é uma religião homogénea, advogando simplesmente a paz e o amor entre os homens, é necessário esclarecer de uma vez por todas o quão falacioso isso é. De um universo de 1.6 mil milhões de muçulmanos, estima-se que aquilo a que se chama de “islamismo radical” represente entre 15% a 25% do total. Estamos a falar de 240 a 400 milhões de pessoas.

A título de exemplo, segundo dados do insuspeitável Pew Forum, 29% dos muçulmanos no Egipto e 15% na Turquia (cujo de processo de adesão à UE está a ser acelerado) acham justificável ataques de bombistas suicidas. Na questão do apedrejamento em caso de adultério feminino, por exemplo, peguemos aleatoriamente em três países de maioria muçulmana, Malásia, Paquistão e Jordânia. Em todos estes países, a percentagem de muçulmanos que quer ver a Sharia como a lei oficial do país é superior a 70%. Destes, 60% na Malásia, 89% no Paquistão e 67% na Jordânia concordam que quando uma mulher é acusada de adultério, a pena seja o apedrejamento. Para o bem e para o mal, goste-se ou não, isto é o Islão. Pode-nos chocar que 27% da população de Marrocos apoiasse o Bin Laden, mas contra factos não há argumentos.

Não se trata de pôr toda a gente no mesmo saco nem de negar que a maioria dos muçulmanos sejam pessoas pacíficas e de bem. Não, o ponto aqui é apenas o de mostrar que a expressão “extremismo islâmico” não se refere a meia dúzia de barbudos recalcados a conspirar numa caverna perdida no Afeganistão. Pelo contrário, é uma realidade transversal a todos os países onde existem muçulmanos e tem dimensão na ordem das centenas de milhões.

O primeiro passo para vencer o extremismo é conhecê-lo. A Europa tem de largar os lugares comuns e o politicamente correto quando confrontada com a realidade do Islão, e isto passa desde já pelo modo como lida com a questão dos refugiados. Talvez na ânsia de mitigar um sentimento de culpa por um passado imperialista, a Europa parece ter-se entregue de corpo e a alma à tarefa de acolher tudo e todos. Neste frenesim, com tanto de admirável como de ingénuo, ignorou a distinção entre auxiliar e acolher, entre estender a mão e abrir a porta de casa. Tal como está a ser feito, o acolhimento de refugiados arrisca-se a tornar-se num gigantesco cavalo de Tróia e a fatura, a médio e longo prazo, pode custar centenas de vidas inocentes como as de ontem.

As escolas, os museus e grande parte do comércio parisiense estão hoje fechados. Passam mensagens nas rádios e nos painéis eletrónicos da cidade a aconselharem as pessoas a não saírem de casa. Refugiados? Refugiados somos nós.

Licenciado em Ciência Política, a trabalhar em Genebra