Quando a Rússia invadiu a Ucrânia em 2022 o avanço muscovita a sul foi impressionante. Vindos da Crimeia, entre outros lugares, os russos rapidamente chegaram a Kherson, cidade importante a norte do Dnipro no oblast (região) homónimo. Em Março de 2022 os russos já controlavam Kherson. Porém, no final do mesmo ano, as forças armadas russas abandonaram a cidade, acção vista por muitos como derrotista, mostrando a incapacidade russa.
É óbvio que quem viu essa retirada russa como uma falha capital nunca leu Clausewitz, ou se leu já foi há muito tempo e já não se recorda das lições do prussiano. Para submeter o inimigo é necessário destruir a sua capacidade de fazer a guerra; em termos práticos isto significa a destruição dos seus soldados, equipamento, arsenais e veículos.
Se tomarmos em conta somente a dimensão comunicacional/propagandística da retirada de Kherson estamos perante um revés magnânimo. Se tomarmos em conta todas as outras dimensões, principalmente a da realidade concreta, estamos apenas perante um revés. O advento da internet amplia o campo comunicacional, dando nascença a uma nova raça de homens, os keyboard warriors (guerreiros do teclado em português). Estes, frequentemente reduzidos à batalha propagandística, instam a mais ofensivas e a mais sangue. É fácil fazê-lo, na esmagadora maioria dos casos o sangue derramado não será o deles. Estes keyboard warriors perdem-se no discurso, esquecendo aquilo a que Maquiavel chamou la verità effettuale della cosa (a verdade efectiva da coisa em português). Alguém deveria lembrá-los que não estão a jogar Call of Duty e que quando se morre no mundo real morre-se mesmo.
A retirada de Kherson já está a ser estudada pelas mentes mais brilhantes do mundo, principalmente nos Estados Unidos da América e na República Popular da China. Não sabemos ao certo o que aconteceu nas reuniões dos decisores russos, no entanto a retirada de Kherson, ocorrida em Novembro de 2022, entrará na História inexoravelmente ligada ao nome de Surovikin.
Surovikin havia alertado semanas antes que decisões difíceis teriam de ser tomadas, para salvaguardar os planos russos. A especulação dissertou sobre as palavras de Surovikin na altura, hoje é quase consensual que o General se estava a referir ao abandono de Kherson, capital do oblast homónimo. Esta decisão do russo lembra a decisão do Marechal Pétain na Primeira Guerra Mundial contra os alemães; transformemos a nossa posição numa fortaleza inexpugnável e deixemos que o inimigo venha até nós. Estas decisões são descritas pelos seus críticos como demasiado prudentes e pusilânimes. Todavia, os soldados que as cumprem tendem a apreciá-las, pois as suas vidas sentem-se valorizadas e protegidas. Quando a hora dum embate inevitável chegar a sua coragem desdobra-se pois estão gratos por ainda estarem vivos.
O que os estrategas constatam – olhando para a retirada de Kherson – é algo extremamente elementar. Mas num mundo líquido onde a prudência é ridicularizada e a inovação é sistematicamente festejada é preciso coragem para tomar uma decisão clássica. E há algo mais clássico do que usar a geografia? Todos os militares de alto gabarito conheciam a sua preponderância, desde Júlio César até Napoleão Bonaparte. Yves Lacoste dirá mesmo que “a geografia serve primeiramente para fazer a guerra.”
Os rios, considerados secularmente como barreiras naturais, modificam o terreno onde as batalhas se desenrolam, acrescentam imperfeições, reduzem certezas. Historicamente o Dnipro já foi considerado a fronteira da Europa; a leste deste estaríamos já noutro lugar. Seja como for a Rússia actual dificilmente se contentará com as terras a leste do Dnipro. Para quem vagueia pelo Kremlim Odessa é tão russa como São Petersburgo ou Donetsk. E aquilo que se começa termina-se.
Do outro lado do Atlântico o Pentágono quer negar Odessa a Moscovo. O Departamento de Estado é mais optimista, crê que a Rússia será removida dos seus 4 novos oblasts, apesar de não acreditar na retoma da Crimeia. Aconteça o que acontecer a retirada de Kherson já entrou nos anais da história militar, e o incidente na barragem de Kakhovka imortalizará a decisão de Surovikin.