Já lá vai mais de um ano e parece que foi ontem. No dia 24 de Fevereiro de 2022 Vladimir Putin ordenava ao exército russo a invasão da Ucrânia. Para os mais distraídos era o retorno da História. Nós, afortunadamente, sabemos que a História nunca retornou pois nunca se foi embora. Porém, o ano de 2022 ficará para sempre na nossa memória colectiva.

A percepção do conflito em curso é bastante distinta tendo em conta o interlocutor que se tem em face. Para os russos a Federação Russa está a proteger as comunidades civis que eram bombardeadas pelo poder central ucraniano, para os ucranianos a Rússia está a retornar ao seu imperialismo histórico e ameaça não só a Ucrânia mas também outros países. É um diálogo de surdos.

Podemos afirmar que no dito “Ocidente” – que, como Régis Debray bem disse, nada mais é do que o pseudónimo da NATO – as populações tomam maioritariamente o lado ucraniano, remetendo toda a culpa do conflito para Moscovo. Noutros lugares a situação é bem mais complexa: na América Latina e em África as opiniões parecem mais divididas, havendo uma tendência que desculpa a Rússia e culpa a Ucrânia.

Para os grandes estrategas sentados à volta da mesa em Pequim e em Washington DC esta guerra deve ser integrada numa perspectiva muito mais ampla. A maioria deles, tanto chineses como americanos, está convencida que a grande competição geoestratégica que definirá este século será jogada entre o Dragão e a Águia, secundarizando o Urso. Albert Camus dizia que nomear mal as coisas é incrementar a desgraça deste mundo. É óbvio que factualmente podemos dizer que aquilo que ocorre no Donbass e arredores é uma guerra, no entanto juridicamente a questão é bem mais espinhosa. Putin não lhe chama uma operação militar especial por acaso, Bush também tratou de descrever a invasão do Iraque como a realização de operações militares.

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Não escapa à atenção de ninguém que se o Tribunal Penal Internacional emitiu um mandato de captura vis-à-vis de Vladimir Putin ainda estamos à espera que o faça vis-à-vis de George W. Bush. Pior, um grande número de pessoas ignora que os Estados Unidos da América e a Federação Russa não ratificaram o Estatuto de Roma, estando em seu pleno direito como estados soberanos; o Tribunal Penal Internacional não tem jurisdição para julgar nem americanos nem russos.

Parece-nos improvável que a Rússia abdique dos quatro oblasts – Lugansk, Donetsk, Zaporijia e Kherson – que tomou. Isto só seria possível se existisse um golpe de estado dentro da própria Rússia, o que é improvável mas não impossível. Parece-nos igualmente improvável que a Ucrânia abdique dos territórios que considera seus. Estamos perante um impasse. Enquanto os russos vertem o próprio sangue e consolidam a sua mística civilizacional os americanos – nas palavras de Lindsey Graham – estão preparados para lutar até ao último ucraniano. A China, menos envolvida no conflito do que a América e muito menos do que a Rússia, observa atentamente e vai polindo a sua imagem internacional.

A narrativa chinesa é cuidada, cautelosa e audaz. Os chineses apresentam-se ao mundo como os sensatos: menos belicosos que os russos, menos agressivos que os americanos. A China deixa a Rússia fazer aquilo que os americanos consideram o trabalho sujo – que vai numa direcção que Pequim aprecia – apresentando um discurso ambíguo. Tanto podemos ouvir da boca dos chineses que a China defende a integridade territorial de todos os estados do planeta – pensando em Taiwan – como podemos escutar que a expansão da NATO é um factor determinante para a resposta russa.

É deveras paradoxal dizer que uma narrativa é simultaneamente cautelosa e audaz. Mas não há outra maneira de a descrever; não é ousadia culpar indirectamente a NATO e cautela defender a integridade territorial de todos os estados?

Ao contrário do que muitos analistas afirmam as divergências entre a Rússia e a China não são gigantescas, e têm vindo a diminuir. Há cerca de uma década atrás era de bom-tom desprezar a Rússia como meramente uma potência média. Mas será que uma potência média consegue resistir à pressão económica, política, estratégica e propagandística efectuada pelo mais poderoso imperium da história? Imperium esse que não actua sozinho, instrumentalizando aliados – as más-línguas diriam vassalos – europeus numa guerra híbrida sem limites. A resposta só pode ser negativa.

E por falar em guerra sem limites… Qiao Liang no seu livro O arco do império com a China e os Estados Unidos nas extremidades escreve: “A globalização nada mais é do que uma moda financeira tida como refém do dólar americano.” A invasão da Ucrânia acelerou razoavelmente um processo que já estava em marcha, a desdolarização do comércio mundial. E nós, que já nem moeda própria temos, pouco falamos disto e pouca importância damos à moeda. Mas em Washington DC, em Moscovo e em Pequim todos os decisores sabem que a moeda é muito mais do que um simples instrumento. A moeda é identidade, a moeda é orgulho, a moeda é história, a moeda é autoridade, a moeda é potência. A moeda é soberania, a moeda é tudo.

Bem o soube a França quando, através de Valéry Giscard d’Estaing, – na altura ministro da economia e das finanças de Charles de Gaulle – cunhou a expressão do privilégio exorbitante (privilège exorbitant) para se referir à hegemonia do dólar.

Todos os conflitos armados do passado tiveram um fim. É provável que o actual também o tenha, se bem que não seja impossível que este conflito acabe num holocausto nuclear e no fim da humanidade, apesar de esse cenário ser improvável. Os chineses não conseguirão parar os mísseis sozinhos, mas nós cremos que os mísseis não cessarão sem a ajuda chinesa.

O sonho da diplomacia chinesa é fazer com a América e com a Rússia o que acaba de fazer com a Arábia Saudita e o Irão – reconciliar o irreconciliável. Se no mundo islâmico significou reconciliar sunitas e xiitas, no mundo cristão significará reconciliar calvinistas e ortodoxos. Uma coisa é certa, neste mundo já nada de importante ocorrerá sem o consentimento e participação chineses.