A área da saúde tem sido tema central ao longo dos últimos dois anos em virtude da pandemia da Covid-19. Antes desta terrível contingência, debatíamos o novo Plano Nacional de Saúde e os objetivos do desenvolvimento sustentável, bem como, a lei da descentralização e da delegação de competências para as autarquias, a Lei n.º 50/2018, de 16 de Agosto. A referida Lei-quadro dispõe, no seu artigo 4.º, que “a transferência das novas competências para as autarquias locais e entidades intermunicipais é efetuada em 2019 e 2020, admitindo-se a sua concretização gradual, nos termos nele previstos”.

Infelizmente, no que se refere a esta lei e ao que foi determinado, é admissível que, por vezes, a espuma mediática dos dias e a crise sanitária, económica e social que estamos a viver possa desviar o foco principal da discussão. E, mais ainda, quando no caso da saúde, apesar da centralidade que lhe foi afeta neste contexto, esta não pode ser uma área à qual possa deixar de lhe ser dada a devida importância naquilo que são as políticas públicas de futuro, isto é, terá obrigatoriamente de haver uma aposta consistente na aplicabilidade de respostas que devem ser aportadas e executadas, seja no Orçamento de Estado, seja nos orçamentos municipais e Grandes Opções do Plano de cada autarquia.

É importante lembrar e sublinhar que a delegação de competências para os municípios na área da saúde é um desafio enorme, principalmente porque o poder local não tem experiência de gestão a este nível e, consequentemente, a sua gestão “de um dia para o outro” é encarada com compreensível desconfiança por parte da atual governança do setor. Ainda mais quando os prazos estão estabelecidos e a obrigatoriedade está plasmada no referido decreto-lei.

Os princípios orientadores que nortearam a delegação de competências no âmbito da saúde tiveram por base a experiência com relativo sucesso na área da educação mas, ao mesmo tempo, beneficiar da aprendizagem obtida com a sua aplicabilidade prática, quer no reforço dos aspetos positivos, quer mitigando o que correu menos bem. De facto, a delegação de competências na saúde tem um universo limitado, ao contrário das outras competências, pois ficam automaticamente de fora os municípios sem Unidades de Cuidados de Saúde Primários, mas essencialmente ficam de fora aqueles cujos Cuidados de Saúde Primários são geridos por EPE. Num recente painel dedicado ao tema da saúde e do papel do poder local, o secretário de Estado Adjunto e do Desenvolvimento Regional deu nota de que, dos 278 municípios do continente, 201 vão assumir competências, realçando ainda o referido governante que 139 vão exercer até dia 31 de março de 2022 e 62 já as exercem atualmente.

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As competências que passam da administração central para a administração local destinam-se essencialmente ao planeamento e ao nível dos materiais. Assim, os municípios passam a ser obrigados a ter Estratégia Municipal de Saúde alinhada com o Plano Nacional de Saúde e os Planos Regionais de Saúde e, conjuntamente com esse documento estratégico, também são criados os Conselhos Municipais de Saúde, que serão presididos pelo presidente da Câmara e terão na sua composição um membro da respetiva Administração Regional de Saúde. Ao nível do planeamento, os municípios também ganharam competências numa área em que tinham prática mas não tinham competência efetiva, nomeadamente a promoção de estilos de vida saudáveis e do envelhecimento ativo. Por outro lado, e em paralelo ou em conjunto com os municípios, as Comunidades Intermunicipais (CIM), enquanto associações de municípios, também ganham competências ao nível inter-regional, ou seja, ao nível das NUTS III no âmbito das sub-regiões. As CIM passam a ter o papel de definição da rede de Unidades de Cuidados de Saúde Primários e Continuados, dão parecer sobre essa rede e designam um representante nos órgãos de gestão das Unidades Locais de Saúde. Ao nível do planeamento, está previsto um maior envolvimento e participação das autarquias na decisão: o território passa a ter “palavra”, a ser ouvido e a ser visto. Por fim, com este diploma, os municípios passam a ter competências para a construção de novas unidades de prestação de cuidados de saúde primários, assim como para a manutenção das mesmas. A partir da assunção das competências, os centros de saúde existentes, no que respeita à gestão do edificado, serão entregues aos municípios e novas unidades serão construídas pelas autarquias consignadas a este diploma, bem como a gestão dos trabalhadores das carreiras dos assistentes operacionais.

A questão central para haver uma efetiva delegação de competências e uma maior descentralização no âmbito da saúde prende-se com dois aspetos que me parecem cruciais para o seu sucesso: uma nova Lei das Finanças Locais e a criação de uma estrutura técnica intermédia, de nível regional ou subregional, ou o reforço de algumas estruturas pré-existentes ligadas ao setor da saúde. Por mais que o Governo possa ter uma real intenção de poder concretizar estas medidas, é compreensível boa parte dos receios explanados quer por autarcas, quer pelo próprio setor da saúde, como já referi. A verdade é que enquanto a Lei das Finanças Locais não for alvo de uma revisão estrutural que permita uma melhor distribuição do dinheiro que é disponibilizado para os municípios, continuaremos a ter um desfasamento e as mesmas duas velocidades entre o interior e o litoral. Mais ainda quando temos os próprios presidentes das câmaras das cidades de maior densidade populacional a denunciar esta questão. Logo, quando se fala no “envelope financeiro” que deve estar anexado a esta delegação de competências, a questão do financiamento das autarquias locais deve vir ao de cima. Outro aspeto, no âmbito das naturais desconfianças do setor da saúde, tem a ver com a efetiva criação de estruturas técnicas intermédias, de âmbito regional, e uma maior avaliação e sentido de compromisso entre todos nessa “territorialização” pretendida pelo Governo. Neste particular, o reforço e a reforma do poder executivo dos ACeS (Agrupamentos de Centros de Saúde) parece-me fundamental na ótica do reconhecimento da importância de uma estratégia comum entre municípios.

Em suma, não podemos voltar a falhar e estas questões são deveras fundamentais até para a concretização da tão almejada recuperação económica e social.