O socialismo em Portugal é constituído por três elementos. A seita, os crentes, e a turba.

A seita nasceu no governo de Guterres em 1995. Cresceu com Sócrates a partir de 2004, teve uma paragem técnica em 2011, voltou com Costa em 2015, e com o mesmo Costa afinou-se em 2019 e acelerou desenvolto em 2022. Entretanto, nesta última fase, perdeu os travões, e segue já desembestada em 2023 a velocidades para que Costa não estava preparado. (Daí a ideia do tal circuito com o Presidente da República. Há que meter umas curvas para que outro se possa espetar em vez dele).

Existe um contrato muito interessante entre os membros da seita. Não há papel, contrato assinado, selo, ou o que seja. Os contratantes não acordam ideias e não assinam nada. Fazem uma coisa curiosa, agrilhetam-se, e seguem fielmente quem a dado momento tem a chave daquilo, na esperança de recompensa futura. Também não precisam de se ver, funcionando o sistema como se num quarto escuro todos os contratantes estivessem fisicamente ligados uns aos outros por uma corrente onde um simples movimento num lado é sentido imediatamente no lado oposto. Como fórmula garante da suavidade e harmonia dos movimentos a efetuar na cadeia, está convencionado ser vantajoso garantir a fidelidade entre todos, e de todos para com o chefe. É como se estivessem pendurados uns nos outros. É também claro que não é conveniente efetuar qualquer movimento repentino ou brusco, já que o local onde estão pendurados, e que não digo qual é para não envergonhar as paredes de onde escrevo, é suficientemente sensível para qualquer veleidade ser pensada duas ou três vezes antes de ser levada à prática. A inconveniência e consequentes dores em toda a cadeia garantiriam certamente vingança nas máximas proporções. Embora não estejam incluídas armas de fogo e cabeças de cavalos, a filmografia de O Padrinho explica mais ou menos a coisa nos seus princípios básicos.

Evidentemente há lutas internas, como a existente entre Medina e PNS. É até expectável, no sentido em que funcionam como montra para que a seita avalie quem, de entre os candidatos, está em melhores condições de vender ilusões aos crentes e à turba, pois isto da Democracia tem este inconveniente. E se algum contratante se lembrar de perguntar “E projetos para o país?”, de imediato outro responderá “Para quê complicar? O que importa são os programas e programinhas disto e daquilo. Não é lá que moram os lugarzinhos e negociatas para nós? Para quê endurecer a vida com submissões aos escrutínios e envios de curriculum se ela pode ser fácil”. E é com uma resposta deste calibre que os intelectos mais curtos e de carácter mal acabado acabam por denunciar o seu verdadeiro juízo relativamente a mãos: a história da mão invisível é uma tanga, não há nada como a mão dos boys.

Os crentes dividem-se em dois grupos: os úteis e os convenientes. Os úteis, mais pragmáticos, andam pelas universidades e fornecem muito material académico, instrumento útil na construção de modelos e delírios que disfarçam a pouca ou nenhuma experiência profissional da seita. Andam também pelos corredores de uma ou outra empresa ou sociedades de advogados e fornecem pontes para as negociatas. Os convenientes, mais idealistas, frequentam a comunicação social e os círculos mais culturais, e fornecem a indispensável respeitabilidade. Servem também para antes das eleições agitar a bandeirinha da cultura que a turba não entende, mas pela qual se baba.

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Apesar dos crentes possuírem razão, são, no entanto, destituídos de clarividência, e por isso incapazes de raciocinar sobre os despistes socialistas a cada mês que passa (ou semana, já que a frequência aumentou recentemente). Mas como a carência intelectual e a vaidade falam mais alto, os crentes nunca se escusam na articulação do verbo que lhes sai sempre fácil. Se nos comunistas a coisa saía em jeito de cassete, nos socialistas sai em jeito de narrativas. Chafurdando na amálgama de realidades que não existem, cartilhas gastas, e lugares-comuns, os crentes vão-se atolando e afogando, tornando-se com o tempo cada vez mais incapazes de elaborar sobre os péssimos resultados que vão aparecendo. E é por isto que mais tarde o crente enfrenta um drama terrível: por não mudarem em tempo útil acabam por envelhecer mais cedo, problema típico dos turbulentos fechos para balanço dos arrogantes com dois dedos de testa.

Por fim temos a turba. Amorfa e confusa entre as fezadas passadas e as desilusões presentes, a turba debate-se entre o sossego da estabilidade miserável de cada dia e o desassossego das mudanças de que já não vai a tempo. Basta sair à rua e observar os rostos toldados pela desistência e fatalidade da sociedade envelhecida em que nos tornámos. A geração de abril, que nunca foi especialmente lúcida e flexível, e agora no fim de linha com a teimosia apurada, recolhe-se num comiserado silêncio que as migalhas do aldrabão tratam de aconchegar a 125 ou 240 euros por migalha enquanto lhe é retirado o pão. Se o seu objetivo foi em tempos uma eventual realização, o devir, as rugas, as carecas, e os cabelos brancos impuseram-lhe agora a salvação por qualquer meio como objetivo primeiro e último. Por estes dias arrasta-se por aí evitando o desconforto da evidência e a ideia do avisado, dando-se ao desplante de desprezar a utilidade da análise e o benefício da dúvida, exercícios que, em rigor, nunca terá praticado. Para esta mole o argumento já não vai a tempo, se é que alguma vez o foi.

E é nesta modorra socialista que Portugal vai definhando. Se na década de 90, quente, excitado e iludido pensava que num par de anos ia ser como o francês ou o alemão, agora, em arrefecimento, macilento, e desiludido, vê-se na contingência de ser apanhado pelo búlgaro. É o resultado de quem se entregou aos vícios da ilusão e da arrogância.

Há muitos anos, em Nova York, em visita a Ellis Island, li o seguinte de um emigrante italiano: “I came to America because I heard the streets were paved with gold. When I got here, found out three things: First, the streets weren’t paved with gold; second, they weren’t paved at all: and third, I was expected to pave them.”. (“Eu vim para a América porque ouvi dizer que as ruas eram pavimentadas a ouro. Quando cá cheguei descobri três coisas: Primeiro, as ruas não eram pavimentadas a ouro; segundo, não estavam pavimentadas; e terceiro, era esperado que eu as pavimentasse”).

Já há algum tempo descobrimos que o socialismo, as transferências da Europa e a dívida não pavimentaram as nossas ruas a ouro. Por estes tempos vamos reparando, com um desconforto difícil de assumir, que afinal não estão lá muito bem pavimentadas, e que, inclusivamente, vão estando cada vez em pior estado. Mas difícil mesmo é perceber e interiorizar que para pavimentar as ruas como deve ser temos de ser nós a fazê-lo utilizando fórmulas bem diferentes daquelas que o socialismo forneceu. Este é que é o grande desafio dos dias de hoje. Como convencer a turba em tempo útil? Isto é que é o diabo.