O armamento nuclear ameaça aumentar desalmadamente a entropia planetária e lançar-nos a todos no caos. Virá a inteligência artificial (IA) em nosso auxílio ou será pior a emenda do que o soneto? Saberemos evitar o pior com o mais recente fruto da inteligência que Deus nos deu? Vislumbrando ou não a mão divina na génese da vida inteligente, todos nos interrogamos e preocupamos com o destino da humanidade.

Só a tecnologia permite enfrentar os desafios criados pela marcha entrópica do universo, ajudando a criar soluções inovadoras para problemas complexos. Estamos muito focados no perigo da guerra e isso é compreensível, mas o mundo gira e avança. A IA e as tecnologias de contabilidade distribuída (DLT) mudam mais o mundo do que a eletricidade e a internet juntas. São tecnologias que alteram as bases da inteligência e da confiança, implicando mudanças civilizacionais de magnitudes nunca vistas. A procissão da IA ainda vai no adro e o sistema ChatGPT já deixa alguns de nós abismados, sendo que as moedas digitais que se avizinham irão surpreender quase todos.

A IA automatiza e distribui o raciocínio, colocando-o ao serviço de qualquer pessoa que saiba usar um browser para trocar informações na Internet, enquanto as DLT automatizam e distribuem a confiança por quem recorra a carteiras digitais blindadas pela criptografia. Diariamente, dezenas de milhares de jovens começam a utilizar estas tecnologias, que se afiguram tão promissoras como disruptivas. Não basta ficar espantado por o Word ter começado a escrever sozinho, ou fascinado pelo facto de o PowerPoint fazer, ele próprio, as nossas apresentações. No momento histórico em que o Teams passou a resumir reuniões, o Excel já faz previsões, e criptomoedas como a Bitcoin dispensam bancos, convém que nos interroguemos sobre como iremos manter os empregos e ganhar a vida. Para além do mais, a chegada de algo mais inteligente e confiável do que os próprios seres humanos levanta questões existenciais que não podem ser ignoradas. Com o devido respeito pela classe política e jornalística, também há que tratar de outros quinhentos.

Nunca foi tão urgente combater a noção mal compreendida acerca da competitividade que leva os seres humanos a dividir para reinar, e tal como procuramos fontes de energia renovável, combatemos a poluição ou criamos materiais mais resistentes e duráveis, também devemos reconhecer novas formas, mais éticas e racionais, de fazer política, estimular a economia, comunicar em segurança e evitar a desinformação. A IA melhora e agiliza a tomada de decisão, e as DLT criam sistemas para otimizar a própria confiança, viabilizando contratos autoexecutáveis cuja previsibilidade tem lugar cativo no novo roteiro para a prosperidade.

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Vivemos no dealbar de um “admirável mundo novo”, e pensamos que a continuidade democrática exige uma reforma política descentralizadora e transparente para conciliar o mérito individual com a ação coletiva. Caso contrário, na ausência da referida previsibilidade, a história irá repetir-se, com a insegurança e as dificuldades económicas a invocarem o populismo e o autoritarismo. Será a dicotomia política “aberto” vs. “fechado” a traçar a cortina de ferro do século XXI no mundo bipolar do pós-guerra, em que a China e os EUA são os cabeças de cartaz na busca do Cálice de Graal da Inteligência Artificial Geral. Ninguém irá parar uma corrida que ninguém pode perder.

O maior perigo para o destino da humanidade é a desconfiança entre oponentes nucleares que temem não ser os primeiros a alcançar a Inteligência Artificial Geral (IAG). Temos os olhos postos na Ucrânia, mas as coisas podem complicar-se e muito em Taiwan. Uma coisa é certa, independentemente do vencedor da corrida à IAG, esta irá aprimorar-se a si própria e ultrapassar o nível da inteligência humana, sendo este o momento certo para definir politicamente o que vamos fazer a esse respeito. Como veremos na segunda parte, a utilização de tecnologias tão poderosas será mais criteriosa e menos contingente se a respetiva administração se basear em consensos alargados à sociedade civil. Felizmente, tal descentralização pode agora ser alcançada com eficácia e segurança.

É inadiável uma profunda reflexão sobre a utilização de tecnologias tão decisivas, sendo demasiado arriscado avançarmos politicamente sem filosofar. Como aponta Henry Kissinger (a quem não falta pragmatismo), “o mundo da IA precisa dos seus próprios Descartes e Kant que expliquem o que está a ser criado e o que significará para a humanidade”. No seu livro A Era da Inteligência Artificial, pode ler-se que, “tal como a gestão de pessoas obedece a uma ética, também a IA necessita de princípios e de uma ética própria – uma que reflita não apenas a natureza da tecnologia, mas também os desafios que coloca.

As mudanças no setor financeiro serão as mais rápidas, sendo confrangedor o silêncio dos dirigentes europeus sobre a orientação das moedas digitais dos bancos centrais (CBDC) que já circulam em vários países, com destaque para a China onde um projeto-piloto engloba 26 das maiores cidades chinesas e centenas de milhões de carteiras digitais que movimentaram os 13,61 mil milhões de e-CNY (a CBDC chinesa) emitidos até ao final do ano passado. Acontece que a humanidade nunca conviveu com dinheiro assim. O histórico das transações de cada uma destas moedas digitais é rastreável e pode ser monitorizado, permitindo a coleta de informações sobre os respetivos utilizadores. Por outras palavras, são os próprios utilizadores das CBDC a transformá-las em bancos de dados com valor semiótico. Como cada uma destas moedas tem uma identificação criptográfica única, os governos podem cair na tentação de as programar de acordo com o perfil político dos cidadãos para recompensar ou dissuadir pontos de vista individuais. Por exemplo, ao serem instaladas na carteira digital de cada utilizador, as CBDC podem ser programadas com taxas de juro positivas ou negativas…

Por isso, se as CBDC vierem a tornar-se obrigatórias (monopolistas) isso não será bom para a democracia nem para a liberdade. Na verdade, só sistemas e redes digitais descentralizadas oferecem garantias satisfatórias de privacidade e liberdade, permitindo distribuir o poder e dificultar ou impedir a manipulação de dados e o controlo dos cidadãos. Ainda bem que a privacidade está no topo das preocupações dos cidadãos europeus, mas, ainda assim, devemos estar alerta. Por exemplo, as já referidas CBDC do Banco Popular da China podem ser configuradas para executar transações de acordo com perfis individuais; indexadas ao sistema de ranking social da rede chinesa WeChat, elas servem para condicionar carteiras digitais e manipular os cidadãos. A desfaçatez da respetiva programação chega mesmo ao ponto de lhes atribuir prazos de validade.

Desejando que o bom senso possa imperar nas terras de Confúcio, não estamos livres de um destino semelhante na velha Europa. Como as pessoas irão depender cada vez mais da tecnologia para satisfazerem as suas necessidades, recorrendo ao mordomo digital da IA para obterem a “sua” informação e à carteira digital de CBDC para obterem o “seu” dinheiro, haverá um sentimento de alinhamento para com quem as ajuda. Assim, no limite, também no “mundo livre” corremos o risco de um dia não sabermos distinguir informação de desinformação e confundirmos dinheiro com senhas de racionamento.

Por isso, antes que tal aconteça, há que garantir a bondade dessa ajuda tecnológica. Quem deve efetuar a respetiva regulação ética? Julgamos que a melhor resposta a esta pergunta passa por uma reforma política descentralizadora em prol da transparência. Numa sociedade onde todos possam usar DLTs como a tecnologia blockchain e fazer prova pública descentralizada das respetivas identidades digitais, todos poderão beneficiar da confiança distribuída e negociar em segurança sem intermediários. Seguindo este roteiro da prosperidade teremos um desenvolvimento humano sem precedentes. No entanto, garantir a transparência necessária para que tal aconteça implica manter debaixo de olho a administração dessas poderosas tecnologias. Como veremos na segunda parte, esta é uma tarefa que toca a todos.