1 Identity Politics

O termo identity politics terá sido usado pela primeira vez no manifesto do Combahee River Collective, de 1977, e deve ser entendido como uma reação ao movimento dos direitos civis, que marcou a política norte-americana nos anos 50 e 60 do século XX. Este movimento, simbolizado pela figura de Martin Luther King Jr., lutou pela abolição da segregação e discriminação legal nos Estados Unidos e pela reivindicação de iguais direitos civis, tendo culminado com a aprovação do Civil Rights Act, de 1964.

Em sentido contrário, a ideia de política identitária é estabelecida com o argumento de que direitos iguais legalmente estabelecidos não garantem uma condição de igualdade e justiça. Isto acontece porque alguns indivíduos, gozando de uma identidade que os coloca em grupos socialmente oprimidos, nunca conseguirão usufruir de condições de igualdade. O princípio liberal do indivíduo como detentor de direitos iguais garantidos pela lei, diz o argumento, não seria capaz de garantir uma cidadania plena a certos grupos sociais, na medida em que, por se ser mulher, gay, negro, latino-americano ou muçulmano, se estará sempre em situação de marginalidade.

Por essa razão, torna-se necessário um novo posicionamento: a reivindicação de uma política que considere essa identidade. Só políticas identitárias se traduzirão em medidas capazes de garantir um gozo efetivo da cidadania por parte daqueles que pertencem a grupos oprimidos – sendo as mais populares dessas medidas as de affirmative action ou discriminação positiva.

É esta ideia de política identitária que tem sido avançada pelas Teorias Críticas que marcam o espaço académico e político norte-americano. Notemos que o objetivo da teoria crítica enquanto ferramenta intelectual é o de providenciar uma análise (crítica) ao modo como as instituições funcionam, em particular ao modo como elas refletem a hierarquia de poder na sociedade, perpetuando sistemas de opressão sobre grupos marginalizados (sendo que cada pessoa pode pertencer a vários grupos e, portanto, ser marginalizada e oprimida de formas concorrentes).

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E para quem subscreve o que, genericamente, se tem vindo a designar como Justiça Social Crítica, a justiça social implicará desmantelar as regras do sistema vigente (nomeadamente o universalismo liberal e a ideia de direitos individuais) como forma de garantir equidade (e já não igualdade) para os grupos oprimidos. Como dizem Richard Delgado e Jean Stefancic, em Teoria Crítica da Raça: uma introdução:

“Ao contrário de algumas disciplinas académicas, a teoria crítica da raça possui uma perspetiva ativista. Ela tenta não apenas compreender a nossa situação social mas também modificá-la; não apenas investigar como a sociedade se organiza em função de divisões raciais e hierarquias mas também transformá-la para melhor.”

2 A viragem identitária

Se considerarmos os princípios teóricos da democracia liberal, o aparecimento de perspetivas diferentes, nomeadamente críticas do próprio sistema, não seria um problema. O pluralismo que o sistema democrático liberal diz oferecer permitiria que diferentes vozes ocupem o espaço público e apresentem as suas reivindicações. No entanto, o sucesso do argumento identitário introduz um aspeto capaz de ferir mortalmente o liberalismo. Para tornar esse aspeto claro, recorrerei a uma formulação popular na filosofia: a ideia de viragem.

No domínio filosófico, usamos a expressão “viragem” (turn, em língua inglesa) para sinalizar um momento de mudança decisivo no modo como articularmos as ideias filosoficamente. A mais conhecida destas expressões é a de linguistic turn ou viragem linguística, que pretende significar uma consciencialização por parte dos filósofos de que a linguagem desempenha um papel fundamental no nosso pensamento, pelo que se deve tornar objeto de reflexão filosófica. Notemos que a expressão não significa que, a partir de agora, a linguagem vai desempenhar um papel fundamental – significa, antes, que a linguagem sempre desempenhou um papel fundamental, mas que só a partir de determinada altura os filósofos se tornaram conscientes disso ou passaram a reconhecê-lo.

Analisemos agora o argumento dos movimentos identitários. Ao introduzir a ideia de que existem políticas identitárias, isto é, políticas que expressam os interesses de certas identidades, este argumento contém no seu interior o seguinte pressuposto: as políticas vigentes são, elas mesmas, resultado de uma identidade específica e é por essa razão que precisamos de outras políticas que defendam outras identidades. A viragem identitária que pretendem promover encontra-se então aqui: importa que nos tornemos conscientes de que todas as políticas são identitárias e que se as atuais são prejudiciais aos grupos oprimidos é porque resultam de um grupo opressor.

É nesse sentido que os movimentos feministas identitários entendem que o sistema atual resulta do patriarcado; os movimentos LGB falam em heteronormatividade; e os movimentos trans referem políticas cisgénero.

Mas talvez o melhor modo de compreender o funcionamento da viragem identitária resulte da argumentação presente na Teoria Crítica da Raça (TCR): a ideia central da TCR é a de que devemos reconhecer a raça como fenómeno socialmente construído para manter um sistema de privilégio para os brancos. O daltonismo(o não ligar a cores/raças) deve ser, por isso, abandonado porque só nesse momento seremos capazes de compreender que o racismo é inerente à nossa sociedade e que todos os brancos beneficiam dele. É isto que Robin DiAngelo (a partir dos “estudos críticos da branquitude”) nos diz em Fragilidade Branca:

“No seu livro The Racial Contract, Charles W. Mills defende que o contrato racial é um acordo tácito, e por vezes explícito, entre os membros dos povos da Europa para afirmar, promover e manter o ideal da supremacia branca em relação a todos os outros povos do mundo. Este acordo é uma característica intencional e integral do contrato social, subjacente a todos os outros contratos.”

(Na mesma linha, encontramos Derrick Bell, o fundador da TCR, que defende que a evolução dos direitos dos negros nos Estados Unidos decorre da convergência de interesses entre brancos e negros – e não em resultado de uma correção social sincera.)

Vejamos como o argumento funciona: 1) a TCR afirma que devemos esquecer o princípio liberal do daltonismo, isto é, o princípio de acordo com o qual devemos ignorar a raça; 2) pelo contrário, devemos reconhecer que as identidades raciais existem, embora sejam social e culturalmente construídas; 3) e isso acontece porque o sistema atual é instituído para beneficiar uma das identidades raciais (os brancos) em detrimento das restantes.

Nas últimas décadas, é este o argumento que tem sido introduzido no espaço público, conduzindo a uma viragem identitária. Se a deixarmos enraizar (é possível resistir?), entraremos num novo paradigma e passaremos a ver todas as políticas como resultado de identidades específicas e não como políticas universais. E é aqui que a viragem identitária ameaça diretamente o liberalismo e os seus valores universais (o que é explicitamente reconhecido e pretendido pelos Críticos). De facto, a universalidade é a base do nosso sistema: consideramos o ser humano de modo universal e por isso falamos em Declaração Universal de Direitos Humanos. Mas o argumento identitário diz-nos que esta narrativa é apenas uma narrativa, resultado de uma identidade específica: a do homem branco, cis, heterossexual, etc.

3 A democracia liberal em perigo

Para além de visar o liberalismo, a viragem identitária afeta de modo profundo os nossos sistemas democráticos. Vejamos em que sentido.

Em primeiro lugar, e na medida em que a lógica identitária força à identificação identitária, estes movimentos acionam o identitarismo inverso – o que nos Estados Unidos se tem traduzido pelo crescimento de movimentos nativistas e de identidade branca. Em boa verdade, esta ativação não é menosprezada pela TCR: como Robin DiAngelo diz, a sinceridade de quem reconhece o seu racismo é preferível aos progressistas que recusam aceitar que são racistas.

Em segundo lugar, a visão identitária introduz uma nova lógica de legitimidade política: essa legitimidade passa a resultar do lugar que determinada pessoa ocupa na sociedade considerando a sua identidade (ou diferentes identidades). É aquilo a que os brasileiros, numa expressão deliciosa, chamam “o lugar de fala”. A partir desta perspetiva, a validade das nossas afirmações vai depender do lugar que ocupamos e que nos colocará mais ou menos perto da verdade: alguém que fale a partir de um grupo oprimido terá um acesso mais privilegiado à verdade porque a sua experiência de opressão é uma experiência mais real e verdadeira de como o sistema funciona. E todas as vozes que não coincidam com a descrição do mundo validada pelos Críticos serão desvalorizadas como resultando de posições de privilégio ou de falsa consciência, sendo, por isso, menos verdadeiras. A consequência, em última instância, é a de que todo o artefacto do discurso argumentativo e racional deve ser esquecido: ele resulta da forma de ver o mundo do opressor, com o objetivo de desvalorizar a experiência real de opressão.

Em terceiro lugar, se toda a política é identitária, deixa de haver espaço para o mecanismo em que assenta a democracia liberal: a representação. Se o sistema é apenas reflexo de uma identidade dominadora, nenhuma instituição nos pode representar, nem devemos aceitar a ideia de que alguém possa defender interesses nacionais ou universalmente humanos. A nova representação (a representatividade) deverá ser identitária, pois só assim se garante que a voz do oprimido é ouvida e que ele participa no sistema.

Por fim, recordemos que o funcionamento da democracia liberal assenta em diferentes vozes, que trocam argumentos no espaço público, tendo em vista negociar e chegar a um compromisso. A velha forma de percecionar a política centrada em interesses económicos e na pertença a classes garantia esse espaço de discussão, negociação, cedências e compromisso. Mas a partir do momento em que avançamos para uma lógica identitária, o compromisso deixa de ser possível pois as nossas identidades não são negociáveis, não podem ser alvo de compromisso. E isso deixa-nos na terrível situação de luta política permanente.

PS: Convoco, desta vez, o caso de Brett Weinstein como exemplificativo da radicalização emocional a que podem conduzir as demandas identitárias: Weinstein opôs-se à proposta de um dia de ausência voluntária de brancos na Evergreen State College (por considerar que era discriminatória), e a reação estudantil acabou por conduzir à sua demissão.