Portugal e o mundo estão mergulhados há eternos meses numa catástrofe social, sanitária e económica. A resposta pronta dos líderes mundiais a este acontecimento, tão inesperado como derradeiro no impacto, foi brutal. Há uns meses atribuiria a este adjetivo o sentido informal ou figurado de espetacular, impressionante, ou avassalador, de forma positiva. A mobilização em torno da solidariedade e da proteção de todos foi espantosa e inspiradora, em certa medida. A verdade é que só podia ter sido assim. Ou melhor, ninguém esperava outra coisa ao aplicar a medida mais drástica de todas: parar o mundo. Fazendo uma analogia bélica, foi há mais ou menos 6 meses que o mundo disparou o seu tiro mais mortífero, imobilizando-se para que o vírus morresse, porque ele só vive se o fizermos mexer.

E foi aqui que tudo correu mal.

Depois da poeira do impacto gigantesco da nossa paragem assentar, revelou-se, ao estilo cinematográfico, o contra-ataque deste inimigo comum: a nossa maior arma não tinha tido resultado. O vírus sobreviveu.

Mas a arma adotada também não foi totalmente eficaz: a paragem foi mal feita. O processo foi mais um conjunto de imposições do que um conjunto de deveres. Quando assim é, só virtualmente se conseguirá implementar um plano que seja cumprido por todos. Desde logo, a falta de escrutínio da primeira resposta criou o precedente para o excesso de confiança de quem a desenhou e implementou, e para o excesso de conforto de quem a devia ter escrutinado ou de quem era o alvo dela. Os números e a nossa posição relativa no contexto europeu são prova disso.

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Entramos agora numa nova fase do combate a este trágico evento e estamos no contrassenso de ter que combater o inimigo com todas as armas menos as mais fortes, porque essas já as usamos. Passada a fase em que a pandemia se combateu com obrigações extremas (de isolamento, de comportamento, de estagnação) teremos agora que a combater com recomendações. Há, no entanto, um problema: o funcionamento por recomendações exige uma enorme participação na sua elaboração para que possam depois ser acolhidas. É da natureza humana cumprir mais facilmente um conjunto de regras quando sente alguma propriedade sobre elas do que quando lhe são alheias. Os últimos meses foram de uma diminuição extraordinária na influência do cidadão comum na política do quotidiano, que passou a ser só da Covid-19, e aí não há espaço para o cidadão comum poder ajudar na construção de políticas, só espaço para as cumprir. O efeito que a pandemia teve na nossa cidadania foi ainda acrescido pelo enfraquecimento da democracia pela ausência de debate. Foram suspensos os debates sobre quase todos os outros temas e sobre o futuro dos restantes setores. Assim como foi suspensa a escola, que só ela serve para formar os nossos futuros. Suspenso o debate e suspensos os que o farão no futuro.

Qual foi o resultado?

Ilustro-o com as recomendações para o início do ano letivo: de forma generalizada, o conjunto de recomendações é “impraticável na sua totalidade”, dizem-no os dirigentes de estabelecimentos de ensino, do Básico ao Superior. Claramente, uma lista exagerada para que, quando algo correr mal, que é uma probabilidade, o culpado não ser quem fez as recomendações, mas sim quem não as conseguiu implementar. Este mesmo, que não teve oportunidade de participar na sua elaboração. Este mesmo, que está confinado ao cumprimento desde há largos meses. E de quem é a culpa deste golpe na construção conjunta da vida cívica de que faz parte, obviamente, o regresso às aulas durante uma pandemia?

Há preocupação neste regresso às aulas, porque há incerteza relativamente à eficácia das medidas apresentadas. A concertação entre todos os setores que estão envolvidos num regresso seguro é nula, o plano não é conjunto e nem todos têm consciência da sua missão e responsabilidade.

Este é um exemplo claro em que o espaço para a co-construção de políticas diminuiu e só serviu para facilitar o trabalho a quem está a gerir o combate à pandemia, que tem caminho aberto para sacudir a água do capote. As pessoas começam a divergir das instituições, porque sentem que não importa a vida em comum. Tome-se como exemplo a exortação ao amor próprio durante o confinamento, em que quase se assumiu que o humano pode viver saudavelmente sem ser em comunidade. Neste clima atribui-se uma importância excessiva a não ser o culpado de coisa alguma quando o que falta é uma cultura em que todos são chamados a contribuir e em que esse contributo e o seu potencial benefício se sobreporão sempre à eventual culpa que, tal como o comportamento do vírus, é imprevisível. Se continuarmos assim, seremos um país de não culpados governados por impunes.