Quando Nicolau Copérnico publicou o seu De Revolutionibus Orbium Coelestium em 1543 colocou à nossa disposição um exercício mental muito mais do que uma experiência científica. Como Immanuel Kant notou no prefácio da segunda edição de Crítica da Razão Pura, “não podendo prosseguir na explicação dos movimentos celestes enquanto admitia que toda a multidão de estrelas se movia em torno do espectador, tentou se não daria melhor resultado fazer antes girar o espectador e deixar os astros imóveis” (FCG, 2008). Foi isso que Kant tentou fazer na sua obra magistral e talvez através do mesmo tipo de exercício seja possível interpretar, enquadrar e compreender as reivindicações feministas mais radicais do nosso tempo.

De facto, nunca como agora o espaço público se encontrou tão preenchido de preocupações, exigências e vocabulários feministas. Um longo caminho foi percorrido desde a primeira vaga que culminou na vitória do movimento sufragista. De inspiração fortemente liberal, esta primeira onda visava a aquisição de iguais direitos políticos e cívicos para as mulheres, com destaque para o direito ao voto, dentro do sistema de democracia liberal. A segunda vaga começará na década de 1960, inicialmente integrada no movimento pelos direitos civis mas progressivamente tornada mais radical pela New Left norte-americana. Em causa estava, sobretudo, a questão do corpo, desde os chamados “direitos reprodutivos” à contestação à objetificação da mulher. São os tempos da queima de soutiens e do vestuário mais masculino; mas são também os tempos da introdução de um vocabulário centrado em conceitos como patriarcado, opressão e a sua comunhão com o capitalismo. Note-se como de um feminismo que ambicionava a conquista de direitos liberais para as mulheres se dá a passagem para um feminismo radical que defende o fim de um suposto sistema de exploração e a sua substituição por uma nova sociedade idealizada. Este feminismo assume, com isso, um carácter fundamentalmente revolucionário, assente num projeto radical de reconstrução social e das próprias relações humanas.

É possível pensar a partir daqui a pluralidade do movimento feminista e refletir sobre como, nos últimos anos, o espaço público tem sido marcado, por um lado, por reivindicações liberais tendencialmente igualitárias e, por outro, por reivindicações de cariz mais radical que aceleram a utilização de mecanismos coercivos por parte do Estado, como o forçamento de quotas legais e a instrumentalização do aparelho judicial. Compreendem-se aqui uma terceira vaga que introduz questões laborais e a defesa de quotas no mundo político e empresarial, mas também questões de género e de liberdade sexual, e uma quarta vaga, em formação, que aprofunda a interseccionalidade e abarca movimentos como o #metoo. Dada a complexidade do movimento feminista atual, quem se debruça sobre o tema vê-se obrigado a destrinçar entre exigências de igualdade hoje largamente consensuais no Ocidente e narrativas de cariz conspirativo assentes na ideia de que há um sistema que, perversamente, colocou de lado a mulher nos últimos milénios da história humana.

Esta última narrativa tem vingado progressivamente no espaço público ocidental. Usemos como exemplo o capítulo «As mulheres do macaco bêbedo» do livro de Afonso Cruz, O macaco bêbedo foi à ópera (FFMS, 2019). Indubitavelmente de boa fé, o autor afirma que “a civilização teve péssimas consequências para as mulheres”, que foram “quem injustamente mais sofreu com ela”, tendo sido “remetidas para um canto da vida social” – num livro que não é sobre mulheres nem feminismo, mas sobre álcool e o seu papel na evolução humana. Sem se dar conta da contradição, naquele mesmo capítulo o autor destaca a centralidade do contributo feminino no que a este tema diz respeito: era da mulher a tarefa de fazer cerveja na Mesopotâmia e teriam nascido da mulher as primeiras ideias sobre agricultura, criação de gado, tecidos, tinturarias, medicina – e a lista continua. Ainda mais importante, o escritor reconhece o papel desempenhado pelas mulheres no desenvolvimento da cultura: “O entretenimento e a cultura estavam literalmente nas suas mãos.” E cabia-lhes contar as histórias que construíam a identidade individual e coletiva dos membros mais novos do grupo, o mesmo é dizer que cabia às mulheres a mais nobre das tarefas: a educação das crianças.

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Não se percebe assim que canto é esse em que as mulheres foram maldosamente colocadas, quando afinal sempre lhes coube um papel tão ou mais relevante do que o cumprido pelos homens. É verdade que não foi habitualmente o mesmo papel – homens e mulheres atuaram genericamente em esferas diferentes, cumprindo tarefas habitualmente diferentes mas igualmente essenciais. Curiosamente, só se adotarmos o entendimento de que o mundo masculino é mais relevante do que o mundo feminino é que consideraremos que as mulheres foram colocadas à parte.

Parece ser este, precisamente, o problema de segmentos significativos do feminismo atual. À semelhança dos pré-copernicanos, estas feministas permanecem agarradas a uma perspetiva do mundo que as impede de ver que ele é muito mais amplo do que o óculo pelo qual espreitam. E como são incapazes de ver para além dele, não conseguem pensar numa solução que não passe pela destruição completa desse mundo e a sua substituição por uma utopia idealizada. Curiosamente, enquanto insistirem em olhar para o mundo desvalorizando o que a mulher fez e sobrevalorizando uma esfera tradicionalmente masculina, serão vencidas pelo seu próprio vocabulário. A existir algo como o patriarcado, ele terá vencido.

Patrícia Fernandes é professora da Universidade da Beira Interior

André Azevedo Alves é professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa