A revolução verde

A onda verde que varreu a maioria dos países da União Europeia nas recentes eleições europeias não constitui grande surpresa para quem tenha estado atento à progressiva ocupação do discurso público pelas preocupações ambientais. A adolescente sueca Greta Thunberg não gerou um movimento ecológico, mas deu voz a uma parte significativa das gerações mais novas, que têm sido alvo sistemático de programas educacionais nesse sentido e de forma cada vez mais intensa ao longo das últimas décadas. E a verdade é que o facto de haver alguma mobilização da juventude em torno deste tema revela, ao contrário da opinião expressa por alguns comentadores mais céticos, que a escola ainda funciona enquanto ferramenta de instrução (ou doutrinação). Os partidos ecologistas aumentaram as suas votações em quase todos os países europeus, passando de 51 para 70 deputados, e na Alemanha e Finlândia alcançaram vitórias muito expressivas, refletindo a ideia crescente de que vivemos um período de emergência ambiental.

Se Portugal se revelou em contraciclo face aos restantes países europeus no que diz respeito à participação eleitoral (o número de votantes aumentou mas não houve uma redução da abstenção em linha com o que aconteceu em boa parte da Europa), ao crescimento de votos em partidos de esquerda e ao não surgimento de movimentos eurocéticos e de direita nacionalista relevantes, o nosso país não ficou, no entanto, fora da onda verde. As questões ecológicas entraram na campanha eleitoral também por via do Bloco de Esquerda e do candidato do Livre, Rui Tavares, mas foi sobretudo o Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) a fazer confluir para si um movimento de apoio que lhe permitiu ultrapassar os 5% de votos e conseguir a eleição de um deputado ao Parlamento Europeu, com 168.447 votos (mais do que duplicou a votação conseguida nas últimas legislativas e triplicou a votação nas europeias de 2014).

Importa, contudo, ter em conta que o projeto político do PAN vai para lá das preocupações com as emergências ambientais que têm servido de plataforma às novas reivindicações verdes. Aliás, a sua origem esteve muito mais marcada, como o demonstram as propostas do partido desde a sua formação, pela questão animal e aquilo que, no domínio da filosofia e por influência do pensamento utilitarista, se designa por “libertação animal” – cujo vocabulário dava forma aos estatutos iniciais do partido.

As alterações entretanto introduzidas não modificaram estes objetivos iniciais (art.º 3.º, n.ºs 1 e 2): “O PAN tem como fim a proteção e a harmonização justa dos direitos das pessoas, dos animais não humanos e da natureza, presentes e futuros [e] trabalha para erradicar todas as formas de discriminação humana, o especismo e o antropocentrismo”.

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Neste sentido, o PAN não se limita a recolher o apoio daqueles que têm preocupações relativas ao aquecimento global, ao desenvolvimento sustentável e à adoção de uma nova forma de nos relacionarmos com a natureza, mas também se apresenta como o Partido capaz de dar voz aos animais não-humanos, que terão deste modo alguma forma de proteção e representação dos seus interesses. Destacam-se aqui as medidas dinamizadas pelo PAN na presente legislatura, como a aprovação do Estatuto Jurídico dos Animais (Lei n.º 8/2017, de 3 de março), a lei que viabiliza a entrada de animais não-humanos em estabelecimentos comerciais (Lei n.º 15/2018, de 27 de março), a proibição do uso de animais selvagens no circo (Lei n.º 20/2019, de 22 de fevereiro), o fim do abate nos canis municipais (em vigor desde 23 de setembro de 2018, depois de um período transitório de dois anos) e a possibilidade de dedução do IVA em despesas veterinárias em sede de IRS (desde 2016).

A popularidade do partido parece residir não só nesta dupla fonte de atração (causas ambientais gerais e transversais juntamente com a mais focada e radicalizada causa da “libertação animal”), mas também no facto de apresentar a sua proposta a partir de uma perspetiva euro-entusiasta. Longe dos euroceticismos que questionam o projeto europeu, o PAN apresenta a União Europeia como o contexto no qual as suas medidas devem ser efetivamente adotadas – fator que se torna atrativo para as camadas mais jovens da população, que se revelam regularmente como as que mais apoiam o projeto europeu. As propostas do PAN apresentam um caráter universal, porque não dependem do contexto nacional ou de tradições específicas, nem visam resolver problemas exclusivamente nacionais. Pelo contrário, as políticas públicas que defendem só assumem verdadeiro sentido se se tornarem o mais amplas possível. E a União Europeia é, enquanto entidade supranacional, o contexto preferencial de atuação, como atesta o programa do PAN.

Por outro lado, como partido recente (o Tribunal Constitucional aprovou a sua criação a 13 de janeiro de 2011), o PAN consegue, pelo menos para já, escapar à perceção de pertença às habituais teias de ligações e interesses clientelares associadas ao sistema partidário português, apresentando-se, além disso, como independente do setor económico – tudo fatores que contribuem para a sua legitimidade e afirmação no eleitorado, em especial o mais jovem.

A confluência destes quatro fatores levou ao registo de uma votação consistente em termos nacionais: como noticiou o Observador, apenas o concelho de Barrancos não registou votos para o PAN e em nenhum distrito a votação caiu abaixo dos 2% (Bragança registou a percentagem mais baixa com 2,19% e Lisboa a mais elevada com 6,79%). Os quatro distritos em que o PAN teve melhor desempenho são essencialmente urbanos e situam-se no litoral, todos com resultados acima dos 5%: Porto (5,59%), Faro (6,15%), Setúbal (6,59%) e Lisboa (6,79%). Em sentido inverso, apenas dois distritos do interior tiveram uma percentagem acima dos 3%: Castelo Branco (3,16%) e Viseu (3,38%). Beja, Bragança, Évora, Guarda, Portalegre e Vila Real mantiveram-se abaixo dos 3%, o que significa menos de metade dos votos conseguidos em Faro, Lisboa e Setúbal. Ora, isto permite desenhar aquele que tem sido considerado o votante típico dos movimentos ecologistas: trata-se de um voto essencialmente urbano e, pelas razões apresentadas acima (e em linha com o revelado pelas sondagens realizadas nos últimos anos), ligado sobretudo às camadas mais jovens da população e com níveis mais elevados de educação formal.

O outro lado

Uma das armas eleitorais apresentadas pelo PAN reside na aparente moderação e despolitização da sua mensagem, o que constitui uma importante vantagem e fator diferenciador, nomeadamente face aos partidos de extrema-esquerda. Desde a sua constituição que o partido recusa a escolha de um espaço ideológico concreto, dizendo não ser de esquerda nem de direita. O objetivo desta posição, mais do que esquivar-se a um posicionamento político claro em relação a questões políticas controversas (o partido apresenta-se como pragmático, decidindo casuisticamente o que é melhor para o país e pairando supostamente acima das querelas partidárias), passa por afirmar um princípio fundamental: o PAN não é de esquerda nem de direita porque as suas reivindicações estariam acima da disputa partidária e ideológica. As suas propostas apresentam-se como um bem em si e a emergência ambiental é uma questão civilizacional e não política. Como questiona Filomena Martins: “Haverá alguém contra as causas ambientais (como um todo), as mudanças climáticas (cada vez mais óbvias) e os animais (ainda que com regras)?”

Nesse sentido, o programa do PAN procura assumir uma dimensão suprapolítica, que está para além da disputa entre visões políticas alternativas ou das várias formas de argumentar sobre o bem comum. Para os verdadeiros crentes, aqueles que recusam as causas “apolíticas” do PAN serão bárbaros negacionistas ou simplesmente oportunistas. Ora, independentemente da nossa convicção pessoal acerca dos problemas ambientais, este discurso é perigoso porque elimina o espaço de discussão política e de ideias. Ao reivindicar para si um acesso privilegiado à verdade, nega o pluralismo e destrói a possibilidade de um debate democrático. Longe da posição moderada à luz da qual alguns movimentos verdes aparecem, este tipo de posicionamento é impositivo e, ao contrário do anunciado, profundamente ideológico: porque não admite a discussão da solução única nem abre espaço à consideração dos possíveis efeitos nefastos das medidas propostas.

É que, mesmo que estejamos de acordo quanto à existência de uma situação de emergência ambiental, há caminhos alternativos para lidar com ela e as soluções a adotar, como sempre acontece em políticas públicas, imporão custos que devem ser explicitamente estudados e assumidos. Não é possível desenvolver aqui de forma completa estas implicações políticas, mas destacaremos sinteticamente quatro aspetos.

O primeiro deles resulta de um argumento económico: a União Europeia já é a zona económica que mais critérios ambientais estabelece ao nível da produção e do consumo. O cumprimento dessas exigências implica custos muito significativos para as empresas e reduz a possibilidade de competir com economias menos rigorosas. Por isso, o custo a pagar em termos de perda de empregos e de redução de autonomia e nível de vida por parte dos grupos sociais mais fragilizados (serão estes os mais afetados) não deve ser ignorado. A propalada descarbonização pode ser um objetivo digno, mas os efeitos que vai desencadear poderão não ter a mesma natureza.

Em segundo lugar, grande parte das medidas ambientais propostas implicam um forte investimento estatal. Como os recursos são finitos (uma realidade convenientemente ignorada em muitos discursos supostamente pró-ambiente), a contrapartida só pode ser a canalização de recursos que estavam afetos a outras áreas (como a educação, saúde ou segurança social) ou, o que tem sido mais usual, a subida de impostos. Ora, os níveis de tributação são já hoje elevadíssimos e a economia europeia está longe dos seus dias gloriosos. Um aumento da carga fiscal sobrecarregará, uma vez mais, uma classe média que, desde a crise de 2007/8, tem dúvidas crescentes sobre o funcionamento dos Estados e a boa alocação dos seus recursos. E se os Estados sociais foram construídos aos ombros desta classe média, não se devem deslegitimar as suas preocupações.

Em terceiro lugar, este tipo de reivindicações reforça frequentemente a lógica estatista que marca a sociedade atual. Por um lado, o paternalismo estatal parece inerente ao domínio ambiental (pensemos na proibição passada dos sacos de plástico e futura de vários outros plásticos), numa lógica que elimina a assunção da responsabilidade pessoal e abre cada vez mais espaço à regulamentação dos comportamentos pelo Estado. Por outro lado, estas dinâmicas assentam na negação de algo que parece indizível no espaço político: independentemente das boas intenções subjacentes a qualquer intervenção estatal, ela produz frequentemente efeitos não antecipados indesejáveis. Podemos optar por centrar a nossa atenção exclusivamente nas boas intenções das medidas e ignorar os efeitos nefastos que têm na prática, mas isso está muito longe de ser moderado, pragmático e não-ideológico. Tal aconteceu, por exemplo, com as restrições aos sacos de plástico (favorecendo alternativas ambientalmente piores e com riscos acrescidos para a saúde pública) e com a aposta cega nos automóveis elétricos (fechando os olhos ao enorme preço ambiental a pagar pelas suas baterias). A discussão ambiental, longe de ser uma questão apolítica e a-económica, está tão sujeita à lógica dos interesses económicos como qualquer outra. Uma área na qual não se podem razoavelmente discutir custos nem políticas alternativas é, aliás, um terreno ideal para a proliferação de todo o tipo de atividades rentistas fortemente lesivas do bem comum, como o passado e presente das políticas ambientais amplamente demonstram.

Por último, e como os resultados do PAN em Portugal revelam, estas reivindicações apresentam um cariz marcadamente urbano, voltando-se contra a vivência rural (onde, ironicamente, o contacto com animais e natureza é genuinamente experienciado). Assumem-se como um caderno de reivindicações e reclamações de uma burguesia urbana iluminada contra a ruralidade e esquecendo ainda mais um país que já se encontra demasiado esquecido e marginalizado. E isto tem consequências profundas porque parte da população se sentirá cada vez mais ignorada pelos seus supostos representantes, que respondem apenas às exigências de uma minoria mais ativa ou com maior possibilidade de voz no espaço público por via da sua educação formal, rendimento e posição social.

Podemos ler as ideias anteriores como um mero exercício especulativo – ou até literário, como faz Michel Houellebecq em Serotonina –, mas a verdade é que movimentos de revolta social difusa como os coletes amarelos em França já nos abriram janelas sobre o futuro. Podemos estar perante uma emergência ambiental, mas tal não significa que não haja um outro lado, mais sinistro e potencialmente problemático, da revolução verde. Ou que o devamos ignorar.

Patrícia Fernandes é professora da Universidade da Beira Interior
André Azevedo Alves é professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa