A polémica levantada em torno da decisão do Ministério da Educação quanto ao caso dos alunos de Vila Nova de Famalicão tem tido o mérito de possibilitar uma discussão ampla sobre os propósitos, funções e limites da escola na sociedade portuguesa. A relevância dessa discussão resulta de ela dever ser enquadrada num contexto mais amplo de transformação das sociedades democráticas liberais – transformação que é visível em diferentes dimensões do espaço público, com especial relevo na educação. É esse enquadramento mais geral e a complexidade da polémica que procuraremos analisar, partindo de três conceitos centrais: escola, cidadania e liberdade.

A escola republicana

A primeira reflexão que importa fazer prende-se com o entendimento da palavra “escola” nesta discussão. Quando, no século XXI, discutimos o papel da escola estamos a remeter para a herança do pensamento republicano que, no século XIX e após as revoluções liberais, marcou uma forma específica de pensar a instituição educativa e o seu papel. No caso português, devemos a nossa matriz ao pensamento republicano da transição do século XIX para o século XX: à luz dessa herança, a escola universal e inclusiva constitui uma ferramenta política de emancipação e desenvolvimento, individual e social.

Durante a I República, entendia-se que a educação deveria constituir um veículo de emancipação do súbdito para o cidadão: o cidadão deixaria de ser um mero recetor da autoridade política para passar a ser um agente efetivo dessa autoridade. Essa transformação individual permitiria, por fim, a transformação e emancipação da própria sociedade portuguesa. Existe assim nesta particular conceção republicana da escola o intuito de a utilizar como ferramenta transformacional no âmbito de um desígnio de engenharia social mais abrangente que proporcionasse a criação de um país novo. Como chama a atenção J. Pintassilgo: “Numa sociedade decadente, como se acreditava ser o caso da portuguesa, só a difusão da educação possibilitaria a sua regeneração material e moral, regeneração essa conducente à formação de um Portugal novo.”

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Esse Portugal novo, de acordo com os republicanos, afastaria a tradição religiosa e a sua (má) influência sobre a cultura portuguesa, bem como os princípios monárquicos enraizados num país com quase oito séculos de vida. A escola cumpriria, por isso, um papel central, em especial pela área de Educação Cívica que faria parte do currículo primário: versando diferentes temáticas políticas e sociais, criaria um substrato político e coletivo comum capaz de substituir a matriz religiosa e monárquica que funcionava como fator de união do país. Nesse sentido, a escola republicana não se deveria limitar à transmissão de conhecimentos científicos e técnicos, mas deveria cumprir uma função de desenvolvimento individual tendo em vista o projeto republicano, o mesmo é dizer: uma função de formação para a cidadania.

Cidadania

A contingência da I República e a necessidade de se afirmar como novo regime transformou a escola pública numa ferramenta política, como aliás resulta das ideias defendidas por João de Barros. A escola serviria para republicanizar os portugueses, pelo que o currículo de Educação Cívica está muito perto do que poderíamos hoje designar como endoutrinação – um termo caro às décadas seguintes, se tivermos em conta a mobilização promovida pelos regimes autoritários e totalitários na Europa.

Em Portugal, isso foi evidente durante a ditadura salazarista e terá justificado uma certa preocupação com o tema após o 25 de Abril. A ideia de “educar para um determinado regime político ou sistema de valores” era sensível e a área de Educação Cívica só é colocada em cima da mesa com a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo em 1986. Mas é apenas com a reorganização do currículo promovida em 2001 que se dão passos efetivos para integrar transversalmente a educação para a cidadania, de acordo com o entendimento de que a escola não se deve limitar à transmissão de conhecimentos científicos, mas deve cumprir a função específica de formar os seus cidadãos para um conjunto de valores amplamente partilhados pela sociedade.

E se, nesse sentido, o nosso entendimento de Escola é devedor da matriz republicana, os princípios de um Estado democrático e liberal deveriam salvaguardar a hipótese de endoutrinação. Teriam, designadamente, que assegurar um amplo respeito pela separação entre esfera pública e esfera privada. De acordo com os princípios liberais, a escola deve promover valores políticos comuns e que estejam de acordo com o documento fundador do regime (a Constituição) mas deve respeitar, simultaneamente, o espaço privado de cada português, que remete para princípios éticos e morais, liberdade religiosa, as chamadas questões de consciência.

No fundo, o princípio liberal é o princípio da lei: o cidadão deve cumprir as leis democraticamente aprovadas e que regulam o seu comportamento na sociedade, mas o indivíduo, na sua esfera privada, tem um espaço de liberdade no qual o Estado não deve intervir. É este espaço de liberdade que o novo entendimento de cidadania vem pôr em causa.

Liberdade

No provocador livro “Porque está a falhar o Liberalismo”?, Patrick Deneen interpela-nos a pensar o momento atual como um de deterioração do paradigma liberal. De acordo com Deneen, esse processo de deterioração resulta das próprias contradições internas do liberalismo e a sua consideração é especialmente relevante para esta análise: devemos entender o liberalismo como movimento filosófico-político que nasce como reação ao Estado absoluto e promove a defesa de um espaço de liberdade individual contra a arbitrariedade do poder estatal. Nesse sentido, o liberalismo caracteriza-se por promover a libertação ou emancipação do indivíduo, como seria divulgado pelo espírito das Luzes. Nas suas visões mais progressistas, ou radicais, o homem seria capaz de se emancipar do poder do monarca absoluto, mas também das tradições, dos dogmas religiosos, das autoridades infundadas. É o espírito que Kant celebrizou com a expressão “Sapere aude!”. Mas, diz-nos Deneen, ao promover essa emancipação das tradições, do passado e de todas as instituições que eram vistas como cativeiros do homem, o liberalismo deixou-o despido e na absoluta dependência de quem lhe proporcionasse tudo aquilo de que se tinha emancipado. Tornou-se assim dependente do Estado – o Estado moderno e de Direito, que cresceu na mesma medida em que o indivíduo se emancipava.

Independentemente de concordarmos com o argumento de Deneen, é possível afirmar que nos encontramos hoje num momento crítico: ao longo dos dois últimos séculos fomo-nos libertando das lógicas familiares, das dinâmicas comunitárias e das estruturas religiosas, e o Estado foi sendo crescentemente percecionado como a única entidade capaz de suprir as necessidades de um ser humano que é naturalmente social. A religião perdeu importância, as famílias foram-se gradualmente fragmentando e aquelas que eram as suas funções, bem como da comunidade em que estávamos inseridos, passaram a ser absorvidas em larga medida pelo Estado e pelas suas agências. E é nesse sentido que muitos passaram a considerar natural que seja o Estado a promover valores educativos que antes eram do foro familiar, o mesmo é dizer, privado.

Seja culpa ou não das contradições internas do liberalismo, deixamos que o Estado passasse a intervir, progressivamente, em todas as áreas da nossa vida, pondo em causa os próprios princípios liberais. E é nesse sentido que, paradoxalmente, encontramos muitos liberais a considerar que cabe ao Estado libertar-nos de famílias e ideias preconceituosas ou retrógradas sem ter em conta que estamos a substituir um (possível) cativeiro por outro (possível) cativeiro, sendo que o segundo possui à sua disposição um leque alargado de instrumentos coercivos e repressivos.

Por tudo isto, a discussão que encontramos hoje em torno da área curricular de Cidadania e Desenvolvimento é consequência de um longo processo que tem vindo a marcar as nossas sociedades. E esse longo processo é de esbatimento da fronteira entre esfera pública e esfera privada e uma tentativa do Estado controlar, de modo jacobino, todas as áreas da nossa vida.

Cidadania e desenvolvimento

A situação que nos remeteu para esta discussão é complexa em várias dimensões. Algumas pessoas, como Sérgio Sousa Pinto, contestam a necessidade de existência de uma disciplina como Cidadania e Desenvolvimento, considerando que a parte defensável dos objetivos da disciplina poderia ser conseguida com o reforço das áreas de História e Filosofia (argumento a que somos sensíveis, embora pudéssemos acrescentar a Literatura). Mas como argumentar com os muitos que parecem concordar com a existência de uma disciplina de Educação para a Cidadania? O cerne da questão passa por destacar a disputa quanto ao entendimento do que deve ser compreendido nessa área disciplinar ou quanto às suas finalidades.

Com efeito, merece atenção a formulação escolhida pelo secretário de Estado da Educação, João Costa, quando afirma que “a Cidadania não é facultativa”. Trata-se de uma simplificação que devemos recusar: como em quase todos os temas políticos, os termos e os seus entendimentos não são consensuais e a atividade política consiste precisamente na participação quanto a essa disputa. Uma coisa é certa: o entendimento do atual Governo, do anterior Governo, deste secretário de Estado ou de outros não é final. A questão em análise é, antes, a de saber o que devemos entender por educação para a cidadania e se será possível, sequer, encontrar no século XXI um terreno comum de compromisso. Considerar que a nossa definição de “cidadania” ou de “educação para a cidadania” é a única ou a verdadeira é simplesmente a reivindicação de um acesso privilegiado à verdade ou a defesa de uma solução única que não é aceitável num quadro democrático. Seria, a este respeito, um exercício mental útil se os defensores da obrigatoriedade e do discurso de que a (sua) conceção de cidadania não é opcional pensassem como encarariam a questão se os respetivos conteúdos fossem definidos por um político democraticamente eleito que não apreciam como, por exemplo, Jair Bolsonaro.

Uma leitura dos documentos de referência para a Cidadania permite acentuar a complexidade da questão. Se, por um lado, torna claro o argumento apresentado da progressiva diluição da fronteira entre esfera pública e esfera privada, por outro, é verdade que o currículo não parece, à primeira vista, especialmente ameaçador. Na verdade, em 2013, sob a direção de Nuno Crato, o Ministério da Educação e Ciência publicou linhas orientadoras para a Educação para a Cidadania com temáticas praticamente comuns. A diferença (crucial) entre as duas abordagens passa pela sua obrigatoriedade: em 2013, tal não era defendido, enquanto, a partir de 2018/2019, Cidadania e Desenvolvimento passou a ser obrigatória e sujeita a avaliação. E aqui começam os problemas mais graves.

Em primeiro lugar, os temas enunciados são bastante genéricos e é dada liberdade pedagógica aos diferentes agentes que devem promover a área disciplinar. Isso significa que cabe ao docente titular de turma (1.º ciclo), ao docente da disciplina (2.º e 3.º ciclos) ou aos docentes e conselho de turma (ensino secundário) decidir um plano de abordagem das temáticas. Ora, tratando-se de temas não científicos e que são alvo de disputa ideológica, ética e intelectual, abre-se espaço para preocupação por parte dos encarregados de educação conscientes do atual momento de polarização e radicalização política, como Artur Mesquita Guimarães. É que, ao contrário do que muitas vezes é afirmado, estes não se equiparam a temas de consenso científico: basta pensar que o próprio conceito de “direitos humanos” e a sua concretização é alvo de intenso debate filosófico e jurídico desde sempre. O mesmo se aplicando, nas áreas da pedagogia e psicologia, ao modo como alguns temas, como sexualidade e saúde reprodutiva, devem ser abordados com crianças e jovens. Por essa razão, conhecer o programa que será aplicado e avaliar esse programa deve ser um direito dos pais ou encarregados de educação.

A recusa de considerar a complexidade e disputabilidade sobre esses temas, apresentando-os como naturais e evidentes, seria suficiente para nos deixar de sobreaviso. Mas é quando analisamos alguns dos materiais disponibilizados pela Direção-Geral de Educação que se torna claro o projeto de endoutrinação em causa. A disciplina de Cidadania e Desenvolvimento tem um objetivo preciso, mesmo que esteja camuflado em documentos para já auxiliares, como o documento relativo à avaliação das aprendizagens dos alunos. Aqui encontramos sugestões de descritores de observação do processo para que o docente possa apreciar se o aluno:

  • Expressa a opinião de que todos os seres humanos devem ser considerados como iguais em dignidade inerente;
  • Sustenta que todos devem reconhecer as liberdades fundamentais inerentes a todos os seres humanos;
  • Defende a ideia que os direitos humanos são necessários para permitir a todos os seres humanos viver em dignidade.

Importa analisar estes “descritores” com cuidado: a generalidade das pessoas entenderá estes aspetos como fundacionais e fundamentais para o entendimento civilizacional atual – não é isso que está em causa. A questão é que, com estes objetivos, derrubamos a fronteira que nos separa do controlo de pensamento: o ponto não é se o aluno é sujeito à lecionação daquelas temáticas, mas se o aluno pensa de acordo com aquelas orientações. É uma distinção subtil mas fundamental para que não vivamos num Estado totalitário – que é aquele que, diluindo a fronteira entre o público e o privado, nos diz como devemos pensar.

Já o segundo leque de indicadores revela uma outra característica do movimento educativo que tem sido exportado dos Estados Unidos. O docente deve verificar se o aluno:

  • Se mostra pronto a contribuir para melhorar a situação de outras pessoas na comunidade;
  • Colabora com outras pessoas para defender causas comuns;
  • Mostra o seu empenho em defender e salvaguardar os direitos humanos das outras pessoas.

De acordo com este movimento radicalizado e que está a transitar das universidades para o restante ensino, não basta o cumprimento da lei: o aluno tem de ser alvo de formatação ativista. E, nesse sentido, cidadania passaria a significar ativismo social – mas este não é um entendimento consensual.

A ameaça do Estado totalizante

Sob a capa da neutralidade “A cidadania não é uma opção” esconde-se, na verdade, um conjunto de valores e princípios que são disputáveis e disputados na esfera pública, em especial no momento atual de polarização e radicalização do espaço político. Numa sociedade democrática e pluralista, a discussão sobre as temáticas e o respeito pelas diferentes visões seriam valorizadas e não desprezadas. Mas os movimentos mais radicais que tomaram a educação como campo de batalha não estão interessados no pluralismo, na discussão democrática e na possibilidade de se abrirem à diferença do outro. Sob o manto do pensamento crítico e da desconstrução pedagógica, caminham rapidamente para um Estado totalizante, negligenciando todos os perigos do que significa abrir essa porta, que nos deixa reféns do partido político que ocupará o Governo nas legislaturas seguintes. Considerando este contexto, a objeção de consciência é um instinto básico de resistência.

Patrícia Fernandes é professora da Universidade da Beira Interior e da Universidade do Minho
André Azevedo Alves é professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa