Das Máximas Délficas – um conjunto de 147 aforismos inscritos em torno do Templo de Apolo, de que o mais conhecido será conhece-te a ti mesmo – continua a emergir a dúctil e poderosa capacidade da língua grega (e do latim que lhe herdou o horizonte) para cunhar uma complexa terminologia enquanto veículo de pensamento que, sem nos apercebermos disso, molda, condiciona e determina todas as nossas possibilidades de reflexão.

A Máxima 92, por exemplo, (Πέρας ἐπιτέλει μὴ ἀποδειλιῶν – qualquer coisa como “cumpre o teu fim sem medo”) sempre me intrigou pela despojada ousadia com que nos atira contra os acerados escolhos da solidão. Mas será assim?

Trata-se de um paradoxo, bem o sabemos, de uma antinomia, da contradição humana por excelência: todos desejamos ser um, só, quer dizer, únicos, especiais, embora jamais isolados, solitários, sem ninguém ao nosso lado. Mas as línguas clássicas recordam-nos que apenas contando fragmentos de céu habitaremos a porção mais remota do tempo, aquela em que fomos. Sós. Só.

Isto porque “só”, derivado da palavra latina solus, transporta sempre este duplo valor semântico: podemos ser “únicos”, “diferentes”, “insubstituíveis”, “distintos de todos os outros”; mas também sentirmo-nos “excluídos”, “abandonados”, “sem ninguém à nossa volta”.

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Segundo alguns autores, a palavra derivaria do pronome reflexo pessoal “se”: ser apenas um, viajar sozinho, aquele assento individual junto à janela; andar “arredio”, “errabundo”, termos que quase já ninguém usa – ​​​​​​e que até fazem sorrir um pouco – mas capazes de causar um estranho nó na garganta no momento em que são pronunciados.

Segundo outros, a palavra derivaria da raiz indo-europeia *se-, que indica separação (no sentido de excluir alguém ou algo) e do latim parare, “preparar”. Alguém se preparou, mas não para nós e, por isso, ficámos sós, “separados”. Ou somos nós que estamos prontos, mas apenas para nós e não para o outro, excluído, deixado à porta. Neste caso, quem se separa somos nós.

Há uma imagem, ou melhor, um vídeo de que me recordo com frequência sempre que me sinto chamado a refletir sobre a estranheza do sentido de ser “só”. E da solidão.

É um daqueles vídeos que o YouTube classifica como “virais”, à semelhança das gripes, pela quantidade de vezes que foram reproduzidos, vistos e “partilhados”. Data de 19 de julho de 2017 e foi filmado em Rabat, durante uma etapa marroquina da Diamond League de atletismo. As imagens registam uma corrida na prova dos três mil metros. Após o tiro, o juiz assinala prontamente uma falsa partida e, ouvindo o seu sinal, os atletas param quase de imediato.

Todos menos um: o marroquino Adil Briami continua a correr sob os aplausos entusiásticos do público e o espanto dos comentadores. A sua corrida à volta da pista é quase completa e absolutamente solitária. Adil não ouviu o juiz e continua a correr como se nada se passasse, incitado pela multidão, confundindo o riso de um estádio inteiro com genuínos gritos de incentivo. Acredita mesmo que leva uma enorme vantagem, pois não vê ninguém no seu encalço. No final, Adil é desclassificado.

E, enquanto todos se riem dele, enquanto todas as câmaras registam o seu suor solitário – transformado, assim que ele se dá conta do sucedido, em lágrimas – aquele olhar de animal ferido e perdido de Adil, aqueles seus olhos de cão abandonado numa estrada, são para mim a mais clara metáfora da solidão.

Que prova é a nossa? Viver? Sobreviver? Subviver? Quantas vezes damos por nós a correr sozinhos por não termos compreendido o mais trivial dos sinais alheios? Quantas vezes pensámos convictamente que estávamos a correr para um objectivo preciso e, quando demos por isso, há muito tínhamos sido eliminados por não termos percebido uma qualquer regra desta prova tão cheia de falsas partidas que é a vida?

E onde estão as pessoas que acreditamos que connosco estão a correr em direção à meta neste momento? Ao nosso lado? À nossa frente, como pontos suspensos destinados a desaparecer? Atrás de nós, porque nos afastámos, porque as pisámos, porque as perdemos de vista? Ou será que nunca chegaram sequer a fazer parte da nossa prova e, embora parecessem próximos, na realidade estavam apenas de visita, parados?

E os aplausos de tantos estranhos que nos veem correr sozinhos, por não termos percebido nada de nada, estão ali para celebrar o quão únicos, o quão especiais somos ou para se rirem do quão sozinhos e perdidos nos sentimos, do quão ridículos somos?

E porque é que ninguém nos abraça quando, por fim, percebemos que nos equivocámos por completo e que corremos numa competição falsa e inútil? E quantas vezes fomos desqualificados por alguém ou por algo, por excesso de solidão, nos dois sentidos do termo?

Disse-me um tradutor amigo que, em bósnio, “só” se diz sam, palavra que é exactamente igual à primeira pessoa do singular do verbo ser, ja sam, “eu sou”. Desta forma, no masculino, as frases ja sam e ja sam sam declinam num curioso estribilho aquela tragicomédia de uma vida que se descobre a meio de uma corrida que, sem que disso se apercebesse, por alguma razão, alguém interrompeu: eu sou e eu sou só. E agora, corro até ao fim? Que farei com este medo?

A estranheza de uma língua que não nos é próxima – as eslavas, por exemplo – obriga-nos a revisitar conceitos que consideramos conhecidos ou assustadores com o olhar desempoeirado do outro. Paradoxalmente, talvez seja desse desconforto e alheamento que nasce aquela antiquíssima, clássica, necessidade de habitar a solidão: é precisamente quando temos medo dela, quando nos sentimos sós e não sabemos para onde ir nem com quem que devemos fazer dela a mais nobre habitação, pois o verbo “habitar”, derivado do verbo latino habitare (um iterativo de habere) significa “continuar a ter”. Um lugar, alguém. Só.

Parados e “sós”, como Adil, num estádio cuja vozearia tantas vezes nos agride, talvez seja tempo de, contemplando a distância que ainda resta, compreender que um dia acordaremos de novo de madrugada, e fluirão as raízes daquele rio que há tanto nos leva a “cumprir o nosso fim”.

A dor passada foi afinal o motor de todas coisas. E um dia talvez não tenhamos medo. É “só” isso.