A atual ministra da Agricultura (atualmente também da Alimentação) completou, no passado dia 25 de janeiro, exatamente 51 meses de mandato, divididos entre os XXII e o XXIII Governos Constitucionais. Nessa mesma data, o IFAP processou o que deveria ter sido apenas mais um pagamento de ajudas da PAC aos agricultores portugueses. Exatamente uma semana depois, os agricultores saíram à rua, manifestando-se de forma impressionante. Ao contrário do que aconteceu noutras geografias europeias, nomeadamente em França e na Bélgica, as manifestações e os desfiles de tratores foram civilizados e ordeiros. Mas tal como nessas geografias, foi impressionante a união evidenciada pelos agricultores que, no caso português, não foi sequer enquadrada por organizações de classe ou sindicais.
Desengane-se quem pense que esta impressionante manifestação de união se ficou a dever a uma mera redução no valor dos apoios pagos a 25 de janeiro. Desengane-se também quem pense que se tratou de uma qualquer manipulação com raízes em forças políticas ou outras, explorando a proximidade do ato eleitoral de dia 10 de março. Não. As causas desta enorme indignação e frustração são bem mais fundas, e radicam no absoluto abandono e contínuo desprezo, ao longo destes 51 meses, por parte do Ministério da Agricultura e por parte das instituições nacionais a quem competiria o adequado acompanhamento político deste tão importante setor da nossa sociedade. Têm sido anos de destruição do tecido rural, agrícola e florestal português, bem como de degradação das instituições tuteladas pela Ministra da Agricultura e de desmoralização dos seus colaboradores. Se a recuperação do tecido rural vai ser dolorosa, a destruição das instituições que dependem o atual Ministério da Agricultura vai deixar marcas por muitos anos. É este o legado político destes últimos 51 meses.
Mas vamos por partes, e vejamos porque é que, em todo o caso, a redução no valor das ajudas pagas, face à expetativa criada, é relevante. Para quem esteja menos por dentro do assunto, o grosso da redução ficou a dever-se a uma adesão maior do que a estimada pelo Governo a um conjunto de medidas de política enquadradas no PEPAC (o plano que estrutura a forma como a PAC é aplicada em Portugal desde 2023): mais agricultores e mais hectares abrangidos por algumas dessas medidas. Então a responsabilidade da redução não é do Governo? É, e por duas ordens de razões. Primeiro porque foi o Governo que fixou as metas de área e de número de produtores, e segundo porque o Governo tem na sua posse, há já alguns meses, toda a informação que lhe permitiria calcular os valores das ajudas a pagar. E certamente que fez esse cálculo, pelo que é imperdoável o desprezo a que votou os agricultores ao não avisar, com um mínimo de antecedência, que estes cortes iriam ter lugar. Mais imperdoável é a sequência de acontecimentos pós-25 de janeiro: primeiro o IFAP vem a terreiro “esclarecer” que esta redução até é benéfica pois significa que mais agricultores e maiores superfícies beneficiaram destas medidas de política (essencialmente, mas não exclusivamente, o apoio ao Modo de Produção Biológica e ao Modo de Produção Integrada), dois dias depois a Ministra da Agricultura e o Ministro das Finanças dão uma conferência de imprensa high-tech e, invocando “comunicação infeliz do IFAP”, derramam 500 milhões de euros sobre o problema criado. Sejamos claros: estes 500 milhões de euros caíram como álcool em cima de ferida aberta. Não só porque a maior fatia deste valor já tinha sido anunciada noutras ocasiões, mas porque, havendo tamanha fartura, mais incompreensível se tornou a redução no valor do pagamento efetuado pelo IFAP. Resumindo: de novo, há a promessa de que será pedido a Bruxelas que autorize um reforço de cerca de 60 milhões de euros para pagar o que falta dos apoios ao Modo de Produção Biológica e ao Modo de Produção Integrada, apoios esses que, pela forma como estão enquadrados no PEPAC, só podem ser pagos com dinheiro do Orçamento Comunitário (são ajudas financiadas pelo 1º pilar da PAC) ou complementadas com Ajudas de Estado (que carecem, portanto de autorização).
Malandrice! Afinal as manifestações e os desfiles de tratores foram provocadas pela quebra no valor das ajudas! Não, não foram. A quebra nos valores pagos foi apenas a mola que os impulsionou. As verdadeiras causas, como comecei por escrever, são bem mais profundas. Algumas são comuns às muitas manifestações de agricultores que, nas últimas semanas, eclodiram um pouco por toda a Europa: uma alteração acentuada na PAC (e de muitas outras regulamentações europeias) para políticas focadas na transição climática e no ambiente, cuidando pouco dos respetivos impactos económicos e sociais, em simultâneo com uma crise internacional decorrente da pandemia e da(s) guerra(s) e com os importantes impactos negativos na rentabilidade da atividade agrícola. Outras, como atrás referi, são muito específicas do nosso país.
Duas palavras sobre as ajudas comunitárias que os agricultores recebem no âmbito da PAC, e que tantas vezes servem de motivo de chacota e de desprezo por parte da sociedade. Uma primeira para deixar claro que são essas ajudas que garantem uma alimentação segura (em qualidade e quantidade), respeitadora de valores sociais e ambientais, e a preço acessível à mesa dos consumidores Europeus. Acabe-se com essas ajudas (ou continue-se a sua redução de forma drástica) e mantenham-se as exigências atrás referidas e os efeitos serão imediatos: ou o preço dos alimentos dispara ou a Europa deixa de assegurar qualquer nível mínimo de autoaprovisionamento alimentar. No primeiro caso, pagarão as famílias portuguesas (e europeias) com rendimentos mais baixos fazendo reaparecer o fantasma da fome mais generalizada na Europa, no segundo caso pagará o ambiente (pela enorme pegada associada ao aumento massivo das importações) e pagarão os povos de países com rendimentos mais baixos, que verão os alimentos “fugir” para a mesa dos Europeus, bem como aqueles que em algumas dessas geografias vêm os direitos humanos esmagados para aqueles que trabalham no campo. Desengane-se, pois, quem continua a pensar que estas escolhas não têm consequências.
Uma segunda palavra sobre as ajudas, para chamar a atenção para a transição acelerada que foi imposta no âmbito da PAC: os objetivos de apoio ao rendimento dos agricultores e de aumento da competitividade da produção agrícola como forma de garantir preços acessíveis dos alimentos (que fez da PAC um sucesso), foram em grande medida substituídos por objetivos relacionados com a transição climática e com a proteção do ambiente. Dir-se-á que estes objetivos são importantíssimos, e assim é. Mas pedia-se aos decisores políticos que tivessem um pouco mais de visão periférica, e percebessem que não é possível alcançar objetivos ambientalmente interessantes se no caminho acabarmos com os agricultores e com os produtores florestais. E foi exatamente isto que esteve na base, tendo-se ignorado a máxima tão na moda de que “ninguém seria deixado para trás”.
Esta prosa já vai longa, e para concluir volto aos assuntos mais domésticos. Nos últimos dias, para além das manifestações dos agricultores e de várias vozes solidárias, foi relevante ouvirmos (pelo menos) quatro importantes figuras do Partido Socialista a realçar que algo vai imperdoavelmente mal para os lados do Ministério da Agricultura: dois ex-Secretários de Estado dessa tutela (Ascenso Simões e Rui Gonçalves), o ainda líder da bancada parlamentar do PS e ex-Secretário de Estado do Ministério da Economia (Eurico Brilhante Dias) e o ex-Ministro Luís Capoulas Santos. Foi igualmente relevante o ensurdecedor silêncio do Primeiro Ministro e a fuga para o pós-10 de março de Pedro Nuno Santos. Assim sendo, duas coisas seriam desejáveis. Para ontem, que a Senhora Ministra seja demitida do cargo como reconhecimento meramente simbólico do desastre que foi a sua passagem pelo Ministério (apenas comparável ao do ex-Ministro Jaime Silva). Para amanhã que a próxima Ministra (ou Ministro) destas áreas seja uma pessoa competente e conhecedora do setor, e que possa tutelar o conjunto de áreas essenciais para o sucesso da integração efetiva das questões económicas e sociais com as questões da proteção e conservação dos recursos naturais e dos ecossistemas: a agricultura e alimentação, as florestas, a coesão territorial e a conservação da natureza. A escolha estará, como sempre esteve nestes quase 50 anos de democracia, nas mãos dos partidos políticos e no voto dos portugueses no dia 10 de março.