Uma fadista, uma lontra, e um grande modelo de linguagem de inteligência artificial entram num museu da história de Portugal, e apercebem-se que têm o mesmo nome: Amália. Escusado será dizer que tanto a lontra como o modelo de linguagem foram assim denominados em homenagem a um dos expoentes da cultura portuguesa. É daqueles casos em que não é preciso assumi-lo explicitamente, já que é uma conclusão lógica que assim seja, logo quando Montenegro anunciou, na Web Summit, que Portugal terá um ChatGPT em PT-PT.
Sobre o repentino anúncio, revelou o CEO da empresa responsável que será apresentada inicialmente uma versão beta, e que a versão final será lançada em 2026. E talvez seja este o verdadeiro sinal de que o nome “Amália” honra a memória da nossa fadista, já que esta também só teve o seu nascimento registado algum tempo depois de realmente nascer, o que até levou a algumas versões sobre qual seria a verdadeira data.
Para um entusiasta do filme Her, no qual Joaquin Phoenix se apaixona por um sistema operativo com a voz de Scarlett Johansson, o futuro longínquo aparenta estar cada vez mais próximo. Apenas se pode expectar que o sistema Amália possa dar respostas com a recriação vocal da verdadeira. Não sendo essa a ideia preparada, pelo menos ofereçam-nos na versão Beta a funcionalidade de ter como respostas, apenas e só excertos e referências a letras cantadas por Amália. Aliás, a mensagem inicial deveria ser sempre: “Amália / quis Montenegro que fosse o meu nome / Amália / acho-lhe um jeito engraçado / bem nosso e popular / quando oiço um usuário a gritar / Amália / responde ao que foi perguntado”.
No caso de questões para as quais não seja possível dar respostas, o sistema deverá responder “Essa informação nem às paredes confesso”. Teria uma dinâmica muito fora da caixa, e permitir-nos-ia relembrar algumas das icónicas canções da rainha do fado.
Sejamos sérios. Os pontos fundamentais para a criação do projecto foram indicados como sendo a variante linguística, a representatividade cultural, e a protecção de dados. Pouco há a comentar sobre o primeiro ponto. Sobre o terceiro, respeita-se o fundamento. Mas a representatividade cultural portuguesa só poderá ser preservada se o modelo retorquir “à português”. Isto significa que em respostas sobre receitas culinárias, os ingredientes estariam inflacionados na sua quantidade, já que “onde come um português, comem logo dois ou três”. Não menos importante, as frases devem demonstrar esse nosso jeito lúdico de nos expressarmos, começando com “Ó amigo, isto não tem nada que enganar” sempre que se pede ajuda a interpretar um mapa; ou mesmo um “Experimente estes cinco links de oficinas de amigos meus que lhe vêem isso mais barato”, quando a dúvida for sobre um barulho esquisito vindo do capô. Imaginemos o que seria abrir o programa com muita pressa para resolver um problema, apenas para sermos brindados com o aviso de “Volto já!” porque a Amália foi ao site do café ao lado? E porquê ficarmo-nos pela Amália? Porque não um modelo António Costa que come sílabas? Ou um modelo João César Monteiro a responder da mesma forma que quando lhe perguntaram o que achava da opinião do público português ao sobretudo esquecido no seu Branca de Neve? Um Herman a responder que com ele “é mais bolos”? Uma Cristina Ferreira a responder em Caps Lock?
Existirá no futuro um Panteão das ferramentas tecnológicas nacionais? Se houver memória, que não se esqueçam de lá pôr aquele drone da Marinha Portuguesa que foi de nariz ao chão na primeira demonstração. Quando chegar o dia desse monumento, certamente já não serão os humanos a tratar da trasladação.
Há quem diga que não precisamos deste modelo de inteligência artificial para nos ajudar. Diz-se que há muito tempo que a resposta para tudo em Portugal é fácil. É Fátima, é Fado, e é Futebol. O arcaico problema português é que a resposta nem sempre é a mesma coisa que a solução.