Após Sally simular um clímax em pleno diner nova-iorquino para ganhar uma discussão com Harry, uma outra personagem ainda chocada com a situação pede ao empregado “I’ll have what she’s having” (algo como “Eu quero o que ela pediu”). Esta breve personagem ultra-secundária, uma senhora cliente, interpretada pela mãe do próprio realizador Rob Reiner, aparece no filme “When Harry Met Sally” apenas por uns segundos, mas eternizou uma frase, imensamente citada até aos dias de hoje. Tão imensamente citada, que a remeto aqui, para retratar a confusão que ditou as primeiras horas da nova legislatura, elegeu o novo Presidente da Assembleia da República, e exibiu as novas dinâmicas parlamentares.

Com dúvidas sobre se houve um acordo, sem dúvidas de que houve um “acorda” para Luís Montenegro. Não só se confirma que o Chega não é confiável e, com as suas táticas, sai sempre a ganhar no seu jogo e na sua estratégia retórica; como se comprova que sem diálogo efectivo com os outros partidos é complicado uma maioria relativa chegar longe.

Se dividir um mandato de Presidente da Assembleia da República dá ares de uma sofisticada democracia europeia, dialogar e reunir consensos programáticos com outros partidos, ainda mais os daria. Só não será um “acorda”, mas sim um “bem me parecia”, se, na verdade, se descobrir que Luís Montenegro decidiu conscientemente testar a mecânica do novo habitat. Pelo caminho, tal como a cliente do diner, André Ventura quis pedir o que os tradicionais partidos mais votados sempre tiveram, bloqueando o parlamento até à hora do dinner e forçando ainda mais a promoção de personagem secundário a principal, rodeado de outros 49 figurantes. Forçou a aproximação do PS ao PSD, autoproclamou-se rei da oposição, e discursou algo que consubstancia um “estão a ver como afinal eles andam juntinhos?”. Algo do mesmo género do que afirmou Pedro Nuno Santos quando confiava haver mesmo um acordo entre PSD e Chega.

A imagem de um estado instável e com sonhos de febre desenhou-se ainda com outros pincéis: com o PS a não aprovar, sem razão aparente, Aguiar Branco na primeira votação e a candidatar à segunda, do nada, Francisco Assis a Presidente da Assembleia da República, conseguindo ficar à frente por dois votos (o que possivelmente não aconteceria se o fenómeno da confusão com o ADN não tivesse prejudicado o número de deputados da AD); depois com a candidata do Chega, Maria Manuela Tender, a ter estranhamente 49 votos e não os 50 da sua bancada; ou com o facto de, apesar da divisão do mandato de PAR, a previsão ser de a legislatura nem chegar a esse momento. A solução para este último problema seria mesmo Aguiar Branco ter o cargo às segundas, quartas e sextas, e Francisco Assis às terças e quintas.

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Voltando ao filme, Harry e Sally protagonizam uma história de coincidências, afastamentos aleatórios e encontros ao acaso, que resultam na incapacidade de ignorar o amor que, afinal, foram desenvolvendo um pelo outro. Ou não fosse o título do filme, em português, “Um Amor Inevitável”. Não quero com isto afirmar que o PS e o PSD morram de amores, ou, tal como o título do filme no Brasil, sejam “Feitos Um Para O Outro”. Haverá por certo momentos bons e maus de ambos juntos e separados, que nos levaram até aqui. Mas apesar de não apreciar especialmente o bloco central, ainda para mais com estas novas versões, estes dois personagens principais têm ainda uma responsabilidade enorme na estabilidade da democracia e para a confiança nas instituições, por muito que as tenham tomado como garantidas e destroçado nos últimos anos.

A moral deste conto de delírios e intrigas das primeiras horas do novo parlamento mostrar-se-á nos acasos, afastamentos e aleatoriedades taticistas, onde se perceberá que a atracção à dignidade regular do funcionamento da democracia e à concretização de ideias e soluções conjuntas irá, no momento certo, ultrapassar qualquer teoria de que os partidos democráticos não devem dialogar, pois se irão atrair tanto que deixarão de fazer oposição construtiva ou trabalhar em soluções responsáveis, sem perderem a relevância escrutinadora.

Pode parecer um lugar comum, mas, para suportar o nosso idealismo, temos de nos agarrar ao que cremos funcionar. Se a AD prometeu o “não é não”, a ambiguidade matará os princípios, e, consequentemente o seu líder. O receio do risco de deixar a liderança da oposição a um partido como o Chega deveria, num país ideal, obrigar os restantes partidos (principalmente os do Governo) a falharem menos, pensarem mais, e a privilegiarem a transparência e a responsabilidade, mesmo quando algo não corre bem. É importante dialogar sem acreditar no medo de se tornarem um só, por muito que a teoria de Harry fosse que nunca poderia ser amigo de Sally porque a inevitável atracção ao sexo oposto meter-se-ia pelo meio dos planos de uma simples amizade. Foi isso que, de facto, aconteceu no filme. Ou, pelo menos, o final deu a entender. Mas um final deste tipo, e sem sequela, leva-nos sempre a imaginar em que é que se traduziu toda esta história, e como terá, efectivamente, sido o resto das suas vidas. Não sabemos o que acontece depois de o filme acabar. Até porque, inicialmente, o final de When Harry Met Sally não estava delineado ser tão feliz assim.

O futuro da legislatura está feliz e triste ao mesmo tempo, tal como o gato de Schrödinger se não lhe tivessem arriscado a vida e o tivessem testado com uma injecção de angústia da consciência humana. A diferença é que, mais cedo ou mais tarde, a sequela sobre a estabilidade política virá, e aí sim, descobriremos se as teorias se concretizam. Preparem as pipocas, a crítica e as curiosidades, e estiquem-se no sofá. As câmaras já estão preparadas, e estão a adorar todos os minutos da instabilidade.