A eleição presidencial de Novembro de 2020 é uma eleição decisiva para a América e para o mundo. Se estivesse a escrever este artigo há duas semanas diria, contra a generalidade das sondagens, que Donald Trump seria reeleito. E não só por a situação económica dos Estados Unidos ter melhorado muito neste quadriénio – no aumento do emprego, e do emprego das “minorias”, na subida dos salários reais, na valorização dos índices de Wall Street (que até à crise viral nunca tinham estado tão altos), com a reforma dos tratados de comércio externo com a China e os acordos no espaço NAFTA com o México e o Canadá –, mas também por causa das profundas e reais divisões dos seus adversários.
A minha reserva quanto à reeleição de Trump é agora a progressão e as consequências económicas do coronavírus que podem, pela recessão, alterar a situação económica actual no mundo e também na América.
Voltando aos adversários do actual Presidente, aos Democratas, a divisão político-ideológica é clara; uma divisão entre o que podemos chamar uma ala centrista, com variantes à esquerda e à direita, e uma ala de esquerda radical.
Dados e regras do jogo
É que apesar de os Democratas e de alguns independentes estarem unidos na rejeição de Trump, é muito difícil encontrar um candidato que faça a convergência dessas várias rejeições. Ou seja, não se vê bem qual será a forma de reconciliar as diversas correntes do Partido Democrático até à Convenção, em Julho, a fim de que se realize o grande objectivo, comum a todos os Democratas: bater Trump.
Os candidatos que podemos considerar centristas, isto é, pertencentes ao establishment do Partido Democrata – como Joe Biden, Michael Bloomberg (ex-republicano) e ainda Pete Buttigieg e Amy Klobuchar –acabaram de desistir para endossar Biden. De um modo geral, todos eles coincidem com os radicais quanto à liberalização dos costumes e quanto a algumas das chamadas “questões fracturantes”: são pró-aborto e imigração livre e aceitam o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas como, contrariamente à ala esquerda do Partido, são também liberais em economia, isto é, globalistas, próximos do grande capital financeiro (Bloomberg é um dos homens mais ricos da América), aliaram-se contra Sanders, seguindo a clara hostilidade do establishment do Partido ao candidato “socialista”.
Mas o meticuloso exame censório da nova ortodoxia não perdoa e a Correcção também já chegou a Biden, que teve de andar a explicar e a justificar as suas condutas passadas julgadas menos ortodoxas, como a sua oposição ao desegregation busing e o racismo de que o acusou a sua companheira de partido e pré-candidata radical Kamala Harris.
Elisabeth Warren e Bernie Sanders diferem dos centristas na visão da economia. Warren tem uma retórica anti-capitalista, defende o aumento dos impostos e uma burocratização da economia através dos controlos progressivos do Governo Federal; Sanders proclama-se socialista, embora ressalvando que o seu socialismo é mais “dinamarquês” do que “bolchevique- comunista”.
Mas a verdade é que o Senador Sanders, de Vermont, chegou a defender a nacionalização da Banca, da Energia e das Manufacturas, um radicalismo muito pouco “dinamarquês” e claramente excessivo para o gosto do comum dos americanos. E em 1988, logo a seguir ao seu casamento com Jane Driscoll, fez uma viagem que alguns dos seus críticos conservadores disseram ter sido “de núpcias” à União Soviética; e ainda que a viagem não tenha sido de núpcias (Sanders era Mayor de Burlington e foi à URSS com uma delegação de que fazia parte a sua nova consorte fazer uma geminação com Yaroslavl), a visita ao paraíso socialista quando ainda havia mísseis soviéticos apontados às cidades americanas continua a ser indigesta para grande parte dos estômagos democráticos.
Radicais e moderados
Mas o discurso radical tem poder; e o poder do discurso radical é indissociável da inquisitória Correcção Política, que domina a Academia e os grandes media. É por isso natural que os candidatos democratas – que precisam do endorsement dos media liberais ou, pelo menos, de evitar que eles os hostilizem em ano de eleições – se intimidem e se acomodem aos fracturantes artigos de fé do novo credo.
Há, entretanto, resistências: no New York Times de 12 de Fevereiro, Sheryl Stolberg escrevia que a ascensão de Sanders nas primárias estava a “causar receio entre os democratas centristas de que a inclinação do partido para a esquerda lhes pudesse custar, não só a possibilidade de reconquistar a Casa Branca, mas também a hegemonia na Câmara dos Representantes e a oportunidade de ganhar o Senado”.
Esta ansiedade e preocupação são compreensíveis, sobretudo em relação aos cerca de 40 congressistas democráticos conservadores que, em 2018, conseguiram conquistar circunscrições onde Trump venceu, atraindo eleitorado republicano e religioso; eleitorado esse e circunscrições essas que, se Sanders for o candidato, os Democratas poderão perder, já que a eleição do total dos Representantes e de 1/3 do Senado acompanham estas presidenciais.
Mas a questão de fundo e mais importante é talvez outra. Como observou Robert W. Merry no National Interest há, na realidade, uma crise na velha ordem mundial, ou melhor, podemos estar a assistir ao seu colapso. E as elites dirigentes das grandes potências ocidentais parecem não se dar conta disso e, por isso, têm vindo a ser destronadas por movimentos e líderes emergentes aos quais, à falta de melhor, chamam “populistas” e “demagogos”, quando não “neofascistas” ou “neonazis”.
Isto acontece também e muito especialmente nos Estados Unidos. Depois da vitória na Guerra Fria e do fim da União Soviética, a pressão da imposição do modelo ideológico “ocidental” a áreas que nada tinham que ver com a tradição histórico-cultural do “Ocidente” – desde a Rússia ortodoxa ao Próximo Oriente islâmico ou à África Subsaariana – levou a uma série de conflitos inúteis e, até agora, perdidos. De George W. Bush no Iraque, a Barak Obama na Líbia, Washington perdeu milhares de homens e triliões de dólares em guerras sem sentido; provocou a Rússia, avançando ou deixando avançar as fronteiras da NATO até à Ucrânia e aos Estados Bálticos, criou revoltas e abandonou os revoltosos à sua sorte.
E enquanto isso, descurou as infra-estruturas, as fronteiras e desindustrializou a América; e criou um fosso entre as elites financeiras e académicas da Califórnia e da Nova Inglaterra e a América profunda do Sul e do Midwest, um fosso não só no leque dos rendimentos mas também nos valores comunitários.
Talvez por isso e pela desatenção das elites político-partidárias ao fundo das coisas, haja hoje uma emergência de lideranças radicais no Partido Republicano e no Partido Democrático.
Como se viu na comédia do Impeachment, Donald Trump faz o pleno dos dirigentes e eleitores republicanos (com a excepção do Senador Mitt Romney). Apesar dos seus ímpetos, das suas mudanças de humor e da sua rodagem e reciclagem de colaboradores; apesar também da raiva quase patológica com que os grandes media da América e da Europa o atacam, Trump mantém-se imperturbável e imutável – e passando sempre ao contra-ataque. Não sendo, de raiz, um conservador social, religioso e austero, tomou como seus esses valores, defendendo-os em termos de política interna e económica. E dentro de um nacionalismo económico e anti-globalista, é um defensor do mercado livre na América, da baixa dos impostos, da reconstrução das infra-estruturas, da protecção das fronteiras.
Sanders, o antiglobalista da esquerda
Curiosamente, o seu ainda possível adversário em Novembro, Bernie Sanders, também não é um entusiasta da globalização. Em 2016, logo a seguir ao Brexit, o então candidato à nomeação do Partido Democrático comentava assim o referendo inglês:
“Sejamos claros: a economia global não está a servir a maioria das pessoas no nosso país e no mundo. Este é um modelo económico desenvolvido pela elite económica para favorecer a elite económica. Precisamos de uma mudança real”.
Ainda que o argumento de Sanders possa não corresponder exactamente à verdade e que os globalistas tenham razão quando dizem que a globalização favoreceu economicamente mais gente no mundo do que a que prejudicou, também não deixa de ser verdade o que escrevia na Time Ian Bremmer: que “as grandes vítimas da globalização” foram “os blue-collars norte-americanos, que viram os empregos na Indústria perdidos para as economias em desenvolvimento.” E os europeus da mesma condição.
Também por isso um outro colunista, Dana Milbank, comparava no Washington Post de Abril de 2019 os dois “velhos septuagenários” (Trump vai fazer 74 anos e Sanders tem 78), chamando a Sanders o “Trump da Esquerda”. Acrescentava ainda que, apesar das profundas diferenças ideológicas e de percurso de vida, Trump e Sanders tinham estilos parecidos: eram “ambos vociferantes e pouco sorridentes, ambos anti-establishment e anti-media, e ambos absolutamente convencidos da própria razão.” O seu confronto seria o confronto de duas Américas radicais, opostas entre si mas igualmente opostas a uma outra América, a América do establishment.
Surpresa na Super Terça-Feira
Foi neste quadro idilicamente radical que caiu a Super Tuesday, e com ela a ressurreição de Biden. Depois de umas primeiras primárias quase desastrosas, o ex-vice-presidente de Barack Obama iniciou a sua recuperação na Carolina do Sul e veio depois a vencer numa dezena de Estados em disputa. As desistências de Buttigieg e Klobuchar ajudaram-no e a retirada de Bloomberg, que estava claramente a tentar “comprar” a eleição por alguns milhões mas que acabou por endossar Biden, fez o resto. Nos Estados do Sul, a sua grande base de apoio foram os afro-americanos.
Em contrapartida, Sanders continua forte entre os eleitores mais jovens e não está mal entre os chamados Latinos – brancos de origem hispânica. Elizabeth Warren, senadora pelo Massachussets, que ficou em terceiro lugar no seu Estado, depois de Biden e Sanders, acabou agora de desistir.
O Socialismo e os democratas na América
Sanders, “o socialista”, não é filiado no Partido Democrático. A história dos socialistas no Partido Democrático começa em 1934, quando Upton Sinclair, um famoso escritor socialista utópico, autor de romances neo-realistas, se apresentou como candidato democrático para Governador da Califórnia. Até aí os radicais tinham-se mantido fora do sistema bipartidário e o candidato do Partido Socialista norte-americano, em 1932, tinha tido apenas 2%. Nos anos 30, seguindo o modelo de alianças da esquerda europeia, entre comunistas, socialistas e radicais, as organizações sindicalistas americanas alinharam com o Partido Democrático de F.D. Roosevelt e apoiaram a ala esquerda do New Deal.
Foi uma relação instável: em 1948, quando Trumman virou à direita e iniciou a contenção da União Soviética e a Guerra Fria, o seu vice-presidente, Henry Wallace, tentou um terceiro partido à esquerda. Nos anos 60, com a guerra do Vietname, repetiu-se a cena por causa da posição intervencionista de Lyndon Johnson, com vastos sectores da esquerda a apoiarem um terceiro partido – o Peace and Freedom Party –, enquanto a “nova esquerda” optava pela rebelião e pela contestação de rua. Em 72, com George Mc Govern, o partido volta a virar à esquerda e teve uma esmagadora derrota eleitoral contra Nixon.
O problema é que esta radicalização à esquerda dos Democratas custou-lhes votos, num eleitorado que estava longe das causas radicais. Mas a autonomização de candidaturas pessoais ou partidárias também sempre foi perigosa. O Green Party de Ralph Nader foi a razão porque Al Gore perdeu a Flórida – e a Presidência – em 2000, contra George W. Bush.
O sistema bipartidário tem penalizado sempre os candidatos que têm dissidências na sua área político-ideológica: em 1992, George H. Bush perdeu contra Bill Clinton, também pela concorrência no seu campo do conservador independente Ross Perot. Por isso a alternativa para os movimentos mais integristas ou radicais tem sido optar pela “longa marcha” e tomar as estruturas por dentro. A “longa marcha” dos intelectuais conservadores no Partido Republicano, a partir da fracassada campanha de Barry Goldwater, em 1964, teria reflexos muito mais tarde, no reaganismo. O mesmo sucederia depois com o Tea Party. Trump acabou por triunfar na nomeação, em 2016, também graças a presença dentro do Partido de grupos mais ortodoxos, como os Evangélicos e o Tea Party.
O duelo final
Sem dúvida que a partir de agora – e talvez até à Convenção de Julho – serão Biden e Sanders quem vai disputar a guerra pela nomeação democrática. Sanders pode ser visto como socialista mas também como herdeiro da linha progressista radical do New Deal. Houve candidatos democráticos, como George McGovern e Michael Dukakis, que seguiram essa linha radical. E perderam.
Biden é agora o candidato do establishment do Partido para parar Trump. E Buttigieg e Bloomberg, que se candidataram ao posto – até porque Biden, com as suas permanentes gaffes e os rabos de palha dos negócios do filho, na Ucrânia e por outras paragens, se mostrava claramente vulnerável ao escândalo –, mal fracassaram, apressaram-se a endossá-lo.
Mas é de esperar que a luta entre Biden e Sanders prossiga. Até porque, com os votos e os delegados da Califórnia, Sanders acabou por não ficar muito atrás de Biden e é provável que os votantes de Elisabeth Warren, que agora desistiu sem endossar nenhum dos candidatos, venham a reforçar as suas hostes.
De qualquer modo, se é certo que o espírito dominante entre os democratas é impedir um segundo mandato de Trump, faltará saber se, para parar Trump, os radicais de Sanders estarão dispostos a votar em massa no centrista Biden, ou se os centristas de Biden estarão dispostos a votar em massa no radical Sanders.
A concluir, é interessante notar, como Tucker Carlson, comentador político da FOX News, que o establishment do Partido Democrático é muito mais orgânico e disciplinado do que o do Partido Republicano. Os Republicanos, em 2016, desfizeram-se entre candidatos do sistema, candidatos próximos, que competiram entre si, dando ocasião a que Trump os batesse um a um. Entre os Democratas, quando se viu que Biden, apesar das suas vulnerabilidades, estava à frente, todos desistiram para impedir o outsider Sanders de vencer.