Os Janeiros da vida gostam de prometer-nos futuros mas o que sinto agora é a saudade de um passado em que, algures no Século XX, os amigos não precisavam de se prefaciar uns aos outros quando tinham ideias diferentes. Se um amigo pensava assim e outro amigo pensava assado, era OK—ser amigo era partir do princípios que a ideologia não era o leme mais infalível da existência. Por muito que não deseje ser o marreta no camarote, censurando incessantemente os tempos que se deterioram diante dos meus olhos, não sinto grande alternativa: odeio o facto de hoje os amigos sentirem a necessidade de se prefaciar uns aos outros.

Num dos seus últimos textos na revista americana First Things, o Carl Trueman escrevia que “há uma tendência crescente na nossa cultura em definir as pessoas em termos das suas ideias e convicções e, assim, negar a legitimidade a qualquer uma que discorde de nós. Isto afecta tudo. Torna raro ter amizades pessoais entre gente de perspectivas diferentes.” Sendo as nossas ideias e convicções uma parte tão importante de quem somos, acontece que também somos o que está para além delas. Somos muito mais do que apenas grandes causas com perninhas.

Como parte de uma minoria religiosa, cresci consciente do que me separava da maioria—talvez até demais. Também por uma questão de cautela espiritual, relacionava-me com todo o tipo de pessoas sendo cuidadoso com as influências externas que me poderiam afastar do caminho certo, na fé em que fui educado. Digamos que era a mim, como parte da minoria religiosa, que me cabia o papel da cautela. Nunca me faltaram amigos descrentes (como os evangélicos chamam os que não são cristãos) mas também nunca me faltou uma medida de vigilância nessas amizades. Olhando em retrospectiva, a vigilância pode até ter-me retirado alguma descontracção mas mal não me fez. Pessoas são pessoas e um pouco de cuidado não magoa ninguém.

Essa vigilância típica de alguém que pertence a uma minoria religiosa não é, talvez, para todos. Há muitos que simplesmente não estão para grandes esforços e sucumbem à pressão. Muitos eventualmente chegaram à conclusão: “se todos fazem o que eu fui ensinado a não fazer, se quase todos não crêem no que eu creio, mais vale deixar-me de rigores e seguir a multidão”. Uma minoria religiosa está sempre a ver parte dos seus ficar pelo caminho. Não sendo eu melhor do que esses que ficam pelo caminho, tem-me sido dado pela providência a capacidade de permanecer. Nasci na minoria religiosa e na minoria religiosa me mantenho. Mas o importante é sublinhar que a capacidade de ficar na minoria religiosa em que nasci nunca foi feita de não me relacionar com quem está fora dela. Manter convicções não depende de evitar quem não as partilha.

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Escrevo isto porque, por alguma razão, subentende-se que o segredo para uma pessoa ser fiel a princípios nos quais foi educada é eclipsar tudo e todos que contra esses princípios vão. Mentira. Nunca vi ninguém ser firme por fugir da realidade. Pelo contrário, a firmeza tende a ser a aceitação mais lúcida do que treme à nossa volta e, ainda assim, persistir. Logo, ninguém é fiel porque foge do mundo que considera hostil. Mais facilmente a pessoa que abandona os seus princípios o faz por manifesta capacidade de lidar com a diferença, preferindo moldar-se a ela e assim não destoar. Quem segue a maioria é que deve ter sobre si o ónus de não saber lidar com o mundo, não quem luta com ele.

Creio que as amizades são tanto mais viçosas quando apreciadas por pessoas sensíveis às diferenças entre elas. Claro que sei a coisa boa que é ter amigos com quem me considero parecido. Mas sei também o prodígio que é ter amigos tão diferentes de mim, estando essa diferença, por exemplo, em princípios opostos na religião, na cultura, na educação. Talvez quem venha de uma minoria religiosa esteja até mais sensível ao encanto da amizade precisamente por ela ser uma operação de aproximação na diferença. Pelo menos, gosto de pensar isso sobre a minha própria experiência: por me encontrar na contra-mão de tantos assuntos, acarinho os amigos que seguem em direcções opostas.

O grande prejuízo é que hoje já nem sou tanto eu que preciso de ser vigilante com a influência supostamente negativa que os meus amigos não-crentes podem exercer em mim. Hoje parece-me que são os meus amigos não-crentes os mais sensíveis à influência negativa que posso eu ter sobre eles. Nessa medida, creio que os papéis se inverteram. Já aqui escrevi no Observador acerca dessa mudança, das pessoas negativas serem hoje as não-religiosas (as pessoas negativas no sentido de as pessoas que não páram de falar em causas que se devem universalizar e que, consequentemente, vão moralizar a vida de todas as que ainda não as seguem). Ao passo que os religiosos tentam hoje avançar as suas vidinhas com a liberdade mínima para não serem incomodados, os não-religiosos muitas vezes parecem querer impedir a religião, hiper-convictos dos seus efeitos negativos.

Dá-se o caso então de ser eu o prefaciado pela vigilância dos meus amigos. Como assim? Amigos meus, distantes das convicções religiosas que mantenho, quando falam de mim e da amizade que nos une tendem a prefaciá-la como quem diz: “sei que o Tiago é um conservador religioso daqueles que julgávamos já não poderem existir em pleno Século XXI, mas… somos amigos…” Parece que ser amigo de um conservador religioso é uma máquina de esclarecimentos prévios, como se a amizade só pudesse ser praticada mediante a garantia de eventuais abjurações futuras. Se a amizade depender da capacidade de alguém não nos desiludir, seremos amigos de quem?

Ao dizer isto, não me entendam mal. Não tenho uma visão idealista da amizade. Acho que há excelentes e necessárias razões para amizades morrerem. A traição parece-me a mais justificada. Mas até um momento tão drástico chegar, momento esse em que alguém em quem confiámos nos revela ser desleal, parece-me absurdo prefaciar os nossos amigos com o reconhecimento das diferenças que temos com eles. Quando, por exemplo, apresento um amigo descrente a um amigo crente, não me sinto na necessidade de apresentá-lo assim: “apesar da fé cristã que não tem esta pessoa, ela é minha amiga”. A amizade pode até ser a arte de prescindir dos prefácios.

A amizade prescinde dos prefácios porque um amigo é a aventura do livro a acontecer, mesmo quando ninguém nos preparou previamente para a história que vamos ler. Não tenho nada contra livros com prefácios, mas não tenho nada contra livros sem eles também. No caso da amizade, prescindo de prefácios porque a surpresa, com toda a graça que lhe assiste, tem aberto todas as portas que precisava de atravessar.