Até à minha juventude, as minhas avós viveram comigo, com a minha irmã e com os meus pais. Era frequente saírem para temporadas na metrópole, ou na fazenda, e para visitas à restante família e amigos que compunham a história de cada uma. Mulheres de percursos e ideologias muito diferentes, tinham em comum a viuvez precoce e a liberdade para gerir o tempo que parecia pertencer-lhes.
Uma avó contava-me sobre as noites de vigília, no escuro, a decifrar vultos, os cães ao lado, e ela de espingarda para defender a casa, os trabalhadores, a terra e o algodão – ainda sei de cor o nome dos cães.
A outra avó mostrava-me a delicadeza da cozinha e da doçaria, feita de segredos familiares guardados em livros escritos em caligrafia codificada, em sinais aprimorados ao longo de gerações de mulheres a quem cabia manter o segredo e o legado. Foi com estas armas que se defendeu nos anos mais duros. Guardo, no pequeno funil para os fios de ovos, a memória do cheiro da Páscoa em doces alinhados em cima do aparador, à espera do Padre.
Sei bem a coragem de uma mulher. Vi-a nas minhas avós. Vi-a depois na minha mãe. Essa coragem que se herda pelos modelos que nos servem de exemplo. Porque não chega falar, é preciso fazer.
Ana Gomes é uma mulher de coragem. É um modelo. Para além das convicções ideológicas, político-partidárias de cada pessoa, é um modelo de independência, de escolhas consistentes com a liberdade democrática e com a responsabilidade a que esta obriga. É um modelo de insubmissão às agendas partidárias. E não orbita os lugares masculinos do poder. É um modelo de inconformismo: é, por isso, um modelo incómodo. Faz-nos pensar como é que, num governo com a maior percentagem de mulheres em cargos políticos, as suas vozes se ouvem tão baixo. Como é que num partido com maior assento parlamentar, num país a entrar na maior crise social e económica de sempre, se preparam eleições sem que as suas perspectivas entrem no debate.
Ana Gomes obriga-nos a ver a sua perspectiva: obrigou a Europa a olhar para Timor. Obrigou o país a olhar para a grande corrupção. Sem medo. A candidatura de Ana Gomes serve a democracia.