Há momentos assim. Um indivíduo consegue uma abordagem pessoal dos problemas que os faz transbordar para a consciência social. Não é necessário ser-se Jesus Cristo. Bastam rejeições ululantes a quem coloca o dedo nas feridas da identidade social que partilha.

Nas décadas recentes, procure-se na poesia, música, literatura, cinema, religião, universidades, imprensa, partidos, escolas, onde quer que seja, para se encontrarem os responsáveis pela desorientação humilhante da secular alma portuguesa. Para se escudarem de tão pesada herança, resta-lhes ostracizarem o político singular que os perturba pela convicção, coragem, persistência. Em poucos meses, as dores recalcadas foram libertadas e tornou-se irreversível o dever social de as enfrentar.

Mas falta o essencial, a prolongada caminhada terapêutica inevitavelmente dependente da disputa aberta entre convicções morais e identitárias distintas.

Iniciada, a recuperação da saúde mental coletiva mede-se pela crescente censura à amoralidade ambígua dos que se equilibram em cima do muro, em particular quando a violência física e o sacrifício da liberdade não se vislumbram. São os que se furtam aos riscos, pessoais e sociais, suportados pelos que assumem um dos campos da dignidade humana e coletiva. Esta terceira via, moral e identitariamente descomprometida, transforma-se em depositária do pântano existencial crescentemente insuportável e, por isso, no alvo fácil por ficar entretida em cima do muro quando a disputa se converte em tão inevitável quanto legítima para os dois lados da barricada.

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Porque pessoas e sociedades não são estáticas, moderação e prudência situam-se nas fronteiras escorregadias da lucidez e da coragem ou da estupidez e da cobardia.

Sem dúvida que a complexidade e subjetividade nunca desaparecem dos enredos sociais e históricos, todavia em dias de disputa do primado moral a realidade, por si, encarrega-se de interditar oscilações entre a coisa e o seu contrário, entre o universal e estável versus o circunstancial e manipulável.

No pensamento social, são dias em que se radicaliza a necessidade de demarcar o bem do mal, a ordem do caos, o certo do errado, o justo do injusto, a vida da morte, a autorresponsabilidade da vitimização. Descendo do abstrato ao vivido, estreitam-se as hesitações sociais entre libertação e escravatura, independência e império, humanismo e tortura, vida e genocídio, democracia e ditadura, integridade humana e mutilação genital, justiça e linchamento, nacional e estrangeiro, ocidental e antiocidental, estabilidade e violência, honestidade e corrupção; não-ser-racista e ser-racista. Exemplos de contextos determinados pelo retilíneo primado moral.

Não assumir a razão moral como causa da longa crise portuguesa é recusar validade ao pressuposto fundador da condição humana e da vida social. Motivo para as próximas disputas eleitorais assumirem sabor a farsa se a sua substância não for a disputa legítima e clarificadora da ordem moral coletiva.

À desesperada necessidade do senso comum em simplificar e clarificar os valores e princípios orientadores da vida quotidiana, o psicólogo social Serge Moscovici chamou-lhe representação social. A ignorância dos letrados, bem mais pestilenta do que a censura, hoje chama-lhe populismo ou demagogia e, por arrasto, humilha as pessoas comuns justamente quando tentam reerguer a sua dignidade.

Em quaisquer circunstâncias históricas, jamais poderá estar em causa o dever do respeito pela neutralidade dos indivíduos, atitude indissociável do retraimento introspetivo quando a disputa é moral tendo em conta que nenhuma sociedade é viável com duas morais, uma para nós e outra para eles. A retórica amoral balofa dos que insistem em ficar em cima do muro situa-se nos antípodas dessa condição. Tudo resulta demasiado evidente em posicionamentos na comunicação social face decisões, episódios ou notícias conotados com a polarização entre sensibilidades morais e identitárias fortemente contraditórias, hoje representadas no parlamento.

Além disso, o contexto atual faz sobressair a diferença entre os dominados pela incapacidade de distinguir a compreensão dos problemas do dever de resolução desses mesmos problemas, os que vivem da procrastinação, dos que possuem maturidade cívica. O mundo não é apenas um lugar para se compreender, mas também para se agir uma vez que o indispensável conhecimento da razão, que se situa nos antípodas da fé, não basta porque eternamente ínfimo face à incomensurável complexidade da condição humana. Maturidade é agir no respeito pela secular identidade dos povos, pela sua história, tradição moral, crenças, convicções; maturidade é abrir a porta à transcendência. Gilbert Keith Chesterton esclareceu: «O louco não é alguém que perdeu a razão, é alguém que perdeu tudo menos a razão.»[1] E as elites pensantes enlouqueceram.

Por seu lado, o intuitivo senso comum filiado a experiências concretas do quotidiano começa, felizmente, a acumular anticorpos contra os obcecados em desencantar um Hitler a cada esquina. São os que ignoram que o inegável horror nazi é dos poucos males na face da terra inequivocamente exorcizado, como a inquisição católica, o absolutismo monárquico ou a escravatura no mundo ocidental. Essa é a inigualável tradição do Ocidente onde a violência moral e intelectualmente assumida nunca se repetiu em gerações e séculos seguintes.

Ignorar ou renegar tal evidência é o seguro de vida da mais perigosa ameaça à condição humana, a gerada pelo horror comunista que sobrevive por nunca ter sido moral e intelectualmente exorcizado. Após o final da guerra fria (1945-1991) pôde manter-se em rédea solta no seu antiocidentalismo e contaminar toda a esquerda. A alma portuguesa afundou-se por isso mesmo.

Existe uma diferença humana abissal entre o crime que foi o nazismo e o crime que é o comunismo. Travar esse horror vivo implica um muro de valores morais e identitários, assim como de atitudes e de figuras públicas fiáveis que delimitem, com clareza, a direita da esquerda. São raríssimos os políticos conscientes dessa imposição moral e identitária, ainda mais raros os capazes de fazê-la vingar num mundo mentalmente adoecido.

Olhe-se para a África pós-colonial que não é indiferente à identidade portuguesa, o continente que mais necessitava e necessita de desenvolvimento, mas ao qual se impôs, há meio século, um rumo na direção contrária. Admitindo a legitimidade das comparações, África é a prova provada da herança moral e material da esquerda distinguir-se para pior dos nefastos nazismo e fascismo, os últimos ainda assim com consequências bem mais circunscritas no espaço e no tempo.

A desgraça africana adensa-se ao contextualizar o continente no percurso dos demais continentes, por exemplo, quanto à evolução da qualidade do ensino, saúde pública, saneamento, segurança pública, emprego, justiça, equilíbrios ambientais, por aí adiante. Do progresso continuado do nível de vida das populações durante o período de ocupação colonial europeia efetiva transitou-se para um interminável ciclo de regressão.

A quem nunca pesou na consciência um tal destino imposto ao continente mais periférico, e sobretudo aos mais carenciados desse mesmo continente, já descontando o que aconteceu e acontece em muitos outros territórios pelo mundo fora, não se concede tolerância, como não se concedeu ao nazismo e ao fascismo. Transformar a pobreza material circunstancial, a das sociedades africanas do tempo colonial, em pobreza moral endémica fruto de experiências ideológicas e políticas pós-coloniais com a vida das pessoas, e da exclusiva responsabilidade da esquerda, constitui um crime contra a humanidade sem paralelo na história da consciência humana, e cujas consequências continuarão a projetar-se nas próximas gerações africanas.

Se isso não atormenta o nosso dever de valorizar a condição humana, restará a selvajaria. É doloroso ver o velho Ocidente mergulhado no descalabro moral e intelectual ao nem sequer reagir a tal hecatombe humana que o tempo não para de tornar óbvia, e que vai alastrando a esse mesmo Ocidente.

Portugal não é África. Não pelos ideais políticos que dominam os seus governantes e instituições. Portugal não é África apenas pela dignidade da sua longa história e pela proteção e socorro material e estratégico europeu. Mas há quem julgue que a culpa do longo mal-estar moral português é do tal político entrado no parlamento há meses, agora também candidato às eleições presidenciais. Numas paragens a estupidez prospera, do outro lado do oceano os Estados Unidos da América.

[1] Citado por Pedro Picoito (2019) «“Ortodoxia”, G.K. Chesterton» in Linhas Direitas. Cultura e Política à Direita, Lisboa, Dom Quixote, p.179.