C. S. Lewis teve uma ideia brilhante quando escreveu, em 1942, The Screwtape Letters, traduzido e publicado em português (Vorazmente teu, Ed. Grifo,1995) e que, na sua versão espanhola, recebeu um título sugestivo: Cartas do diabo ao seu sobrinho. Nesta imaginária correspondência, um velho demónio dá instruções a um diabinho ainda caloiro na arte da tentação. Um exemplo da sua imperícia verifica-se quando o principiante se alegra pela iminência de uma guerra, na expectativa da condenação de muitas pessoas. Seu tio, experimentado tentador, desengana-o dizendo que, quando os homens sabem que podem morrer, preparam-se para esse momento. Por isso, a estratégia do diabo é que não se fale da morte, nem do inferno ou da condenação. Alienadas as pessoas em relação ao seu último destino, maior é a probabilidade de que não alcancem a salvação.

A teologia medieval dissertou amplamente sobre a queda de Lúcifer e dos seus anjos. O perigo da condenação eterna era tema frequente na pregação religiosa, então mais centrada no temor a Deus do que no cristão amor filial ao Pai do Céu. Bosch pintou, com os requintes de uma prodigiosa técnica e de uma fantástica imaginação, os suplícios das almas condenadas. Mozart compôs um pungente Requiem, em que aos acordes dramáticos que proferem a condenação eterna dos malditos, responde a aflitiva prece da alma piedosa. Dante, na sua Divina Comédia, descreveu os círculos infernais, por onde vagueiam os que já perderam toda a esperança. No Auto da Barca, de Gil Vicente, o transe desta vida para a eternidade está representado na embarcação que assegura a passagem deste mundo caduco para o que não tem fim. Também Shakespeare, no seu Henrique V, se questiona sobre a responsabilidade de um rei que proclama uma guerra que pode ser ocasião de perdição eterna para muitas almas.

Com o iluminismo, o racionalismo e o cientismo do século XIX, abandonou-se o que se supôs ser uma crença pueril, como se o diabo não tivesse mais credibilidade do que o lobo mau da história do capuchinho vermelho. Não foi só dos manuais de filosofia e das obras de arte que o maligno desapareceu, porque também na Igreja praticamente se deixou de falar do demónio. Por isso, hoje em dia, na pregação evita-se qualquer referência ao diabo, ou à condenação eterna, na falsa suposição de que a salvação universal está, à partida, garantida. Nas missas de corpo presente invariavelmente se ‘canoniza’ o defunto e, até entre algum clero católico, os exorcistas são vistos com desconfiança.

Porém, o demónio existe. A sua presença e acção estão muito presentes no Evangelho. Mas, como saber se os distúrbios dos alegadamente possessos não são perturbações psíquicas?! A ciência não poderá, um dia, explicar racionalmente os fenómenos paranormais que a Igreja atribui a causas diabólicas?!

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A estas e outras perguntas responde O último exorcista de Lisboa, de Inês Leitão, da Editora Guerra e Paz, cuja primeira edição é de Março de 2020. A propósito da vida do Padre Gregório Verdonk, sacerdote holandês que viveu muitos anos em Portugal, com fama de santidade, conta-se a impressionante história de Anette.

Anette era uma menina holandesa de sete anos, a mais nova de quatro irmãos. Uma vez, ao fim do dia, recusou-se a terminar a refeição, tendo seus pais insistido para que comesse o que tinha no prato, pois ninguém se levantaria da mesa enquanto não acabasse o seu jantar e, todos juntos, rezassem uma breve oração de acção de graças, como sempre faziam. Foi então que, surpreendentemente, “soltou um grito lancinante e todos os pratos e travessas de loiça em cima da mesa estalaram”. Acto seguido, Anette fugiu para o seu quarto, onde se fechou desde então. Outros comportamentos anómalos foram depois registados: “as suas gargalhadas também eram perturbadoras, pareciam invadir a totalidade da casa, passavam paredes”; “ria da sua vizinha, como um homem de 40 anos”; “a língua que falava maioritariamente era latim, por vezes grego” e “deixara de interagir com os pais ou com os irmãos (…), comia pouco e, por vezes, com as mãos, quando surpreendia todos com um apetite voraz”. “Os pais não sabiam o que fazer e eram invadidos por um sentimento de culpa e de incapacidade. Deixaram de ter em casa uma filha pequena, passaram a ter qualquer outra pessoa, que desconheciam, dentro do corpo dela.”

Quando a medicina se confessou incapaz de resolver o problema de Anette, entrou em acção o Padre Gregório Verdonk, com quem ela, inexplicavelmente, “falava um latim perfeito”. Quando o sacerdote se referia ao Amor de Deus, “Anette punha as mãos nos ouvidos, ou mordia os dedos e gritava com toda a sua força, como (estando) fora de si. (…) Anette parecia ter ganho a força bruta de um adulto e o olhar sibilante de uma cobra.” Constata a autora que o “Pe. Verdonk olhara, pela primeira vez, a face do demónio, através daquilo que ele sempre considerara mais puro: uma criança.”

Graças a Deus, este primeiro exorcismo do Padre Gregório foi bem-sucedido e Anette voltou a ser “aquilo que o seu espírito nunca deixara de ser: uma menina pequena, de canudos loiros, que gostava de correr nos campos de Valkenburg, enquanto brincava com os irmãos mais velhos.” A cura espiritual não se ficou a dever apenas ao exorcismo, mas também à oração: “a família fora instruída a rezar junta: ao acordar, antes de dormir, a ir diariamente à Missa. Deveriam comungar (…) sem faltar ao ritual da confissão”, que “não poderia ser vã ou rápida, tinha de ser integral e detalhada” em relação às faltas graves, como se exige para que a absolvição seja válida.

Talvez a ciência possa, um dia, explicar algumas das perturbações verificadas na Anette, ao tempo da sua possessão diabólica, como a sua desmedida força, a sua voz estranhamente grossa, a sua indiferença em relação aos seus pais e irmãos, os seus ímpetos de violência e raiva, a sua falta de apetite, alternada com períodos de uma animalesca voracidade. Mas, decerto, não há ciência que explique que uma criança de sete anos, que nunca aprendeu ou, sequer, ouviu falar em grego ou latim, seja capaz de se expressar, de uma forma fluente e teologicamente coerente, nestas línguas mortas. Pode-se, portanto, dizer que, de certo modo, é a própria ciência que prova a existência do mal.

Paradoxalmente, os que negam a realidade do demónio, provam a sua existência. Nele crêem todos os que acreditam em Jesus, que disse que Satanás “foi homicida desde o princípio, e não permaneceu na verdade, porque a verdade não está nele. Quando ele diz a mentira, fala do que é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8, 44). Não é uma figura do passado, mas presente: “a verdade não está nele”, “diz a mentira (…) porque é mentiroso”. Como negar a sua existência e acção é, obviamente, uma mentira, que melhor prova de que os que nele não crêem são, precisamente, seus súbditos?!