Neste junho, o presidente dos Estados Unidos assinou um ato que tornou o “Juneteenth”, Dia da Proclamação da Emancipação, processo que deu início ao processo de abolição da escravatura ~- um feriado oficial em todo o país, algo que foi motivo de celebração pelo seu significado. Apesar de parecer algo “pequeno”, este tipo de reconhecimento é um simbolismo importante que ajuda no processo complexo de desconstrução da narrativa histórica predominante.

Há exatamente duas décadas, em 2001, no Rio de Janeiro, eu estava no 1º ciclo da escola, altura em que já havia aprendido sobre o então chamado “descobrimento do Brasil em 1500” e da existência, no passado, dos tantos engenhos de cana-de-açúcar em locais bastante próximos. Os manuais, no entanto, contavam uma história do mundo que sempre pareceu incompleta. Não tivemos aulas sobre a história dos países africanos e o seu povo, a não ser quando a escravatura era mencionada — e tampouco recordo-me de algum debate sobre tal tema alguma vez ser promovido.

Hoje, em Lisboa, eu trabalho com Educação e, para a minha ingénua surpresa, vejo que os manuais de história ainda retratam, no geral, algo muito parecido com o que eu aprendi: uma narrativa eurocêntrica, parcial e, por vezes, quase romântica sobre alguns dos acontecimentos mais tenebrosos da história da Humanidade e que ainda repercutem de forma negativa, todos os dias, na sociedade.

Isto é certamente preocupante, porém, infelizmente, não é inesperado.

Enquanto pessoa branca e privilegiada, eu tomei consciência sobre a dimensão do racismo já muito depois na vida. Hoje sei que tal história foi o ponto de partida para este sistema injusto e complexo, que vai muito além de atos isolados de preconceito. O racismo estrutural e o racismo institucional representam a manutenção do sistema que continua, das mais diversas formas, a dificultar que pessoas não-brancas, e, principalmente, pessoas da comunidade negra, em todo o mundo, acessem as mesmas oportunidades e usufruam dos mesmos direitos que as demais.

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Para mudar este cenário, é fundamental que sejamos todas e todos, antirracistas.

A socióloga e professora Cristina Roldão, uma das grandes vozes a combater o racismo em Portugal, afirma que o racismo combate-se com práticas englobadas nos “5 R´s”: Reconhecimento, Representatividade, Reparação, Redistribuição e Resistência. É uma receita que precisa ser adotada e colocada em prática todos os dias.

A Comissão Europeia lançou, em setembro de 2020, o “plano de ação da UE contra o racismo 2020-2025”, que propõe diversas medidas para o combate ao racismo em todas as suas esferas. Em abril de 2021, Portugal, então, apresentou a versão preliminar, para consulta pública, do chamado Plano Nacional de Combate ao Racismo e Discriminação, com o mesmo propósito. Este apresenta quatro princípios transversais e propostas direcionadas a vários setores como educação, habitação, justiça, entre outros.

Apesar das políticas públicas aparentarem caminhar cada vez mais nesse sentido, a realidade ainda está muito longe do ideal; o passo a dar ainda é gigante. Existe, sim, uma mentalidade predominantemente racista na sociedade portuguesa (basta ver os resultados do último European Social Survey), muito herança do passado colonial, e as mudanças estruturais podem levar demasiado tempo para, de facto, surtirem efeito. As organizações e as pessoas precisam, claramente, liderar esse processo nos seus espaços de atuação e influência, para que a transformação aconteça de forma transversal na sociedade e na sua estrutura. Do governo às grandes corporações, das escolas à família, é preciso que toda a sociedade se responsabilize.

No âmbito educativo, o Conselho Nacional da Educação também apresentou em 2020 um conjunto de doze recomendações sobre o tema no documento “Cidadania e Educação Antirracista”, um importante fomento para as escolas e outras instituições de ensino aplicarem tais iniciativas. Muitas das recomendações são estruturais e dependem diretamente de políticas públicas para funcionarem, como, por exemplo, alterações no currículo e programa de incentivo para formação de professores. No entanto, as instituições e os educadores, dentro e fora do sistema de ensino, devem utilizar da sua autonomia para reforçar as práticas mais facilmente aplicáveis.

A Educação Antirracista deve ser estimulada em todo e qualquer espaço educativo. Nas instituições de ensino, vai muito além de desconstruir a narrativa histórica do colonialismo (o que é extremamente necessário). É preciso deixar de silenciar e repensar a forma que criamos espaços seguros e justos para todas as crianças e jovens. Rever e mudar políticas e regras que sejam particularmente opressoras para alguns grupos, estimular abertamente o debate e reflexão sobre o racismo com professores, técnicos e alunos, promover ativamente, em todos os níveis, – desde o uso da linguagem e nas referências até a composição das instituições – a representatividade étnico-racial, criar e aplicar protocolos de intervenção para casos de racismo e discriminação (e comunicá-los de forma transparente) e incluir a perspetiva de toda a comunidade educativa, são apenas algumas das iniciativas que podem ser implementadas nas instituições. Em Portugal, há diversas organizações que contribuem para essa realidade e com as quais podemos (e devemos) aprender, para atuarmos colaborativamente.

O compromisso com a Educação Antirracista é um movimento necessário. Num mundo de desigualdades, é fundamental educarmos seres humanos que sejam, para além (ou acima) de suas habilidades profissionais e técnicas, agentes ativos pela justiça, ou corremos o sério risco de vivermos num futuro altamente tecnológico, ainda mais global e supostamente mais próspero, porém que continue a perpetuar as desigualdades criadas há séculos e ainda perigosamente presentes. Isto não pode acontecer. Só seremos verdadeiramente disruptivos quando, coletivamente, formos capazes de ultrapassar a (i)lógica secular do racismo.

Nas últimas semanas, nos encontros da formação sobre Educação Antirracista, do Grupo EducAR, temos discutido muito sobre a branquitude, a “rememorialização”, os movimentos sociais, africanidades, o ambiente escolar e o antirracismo como exercício de cidadania. Ser antirracista, como indivíduo, é uma escolha e um processo. Porém, enquanto houver qualquer tipo de discriminação racial (especialmente sistémica), tornar-se antirracista é, absolutamente, um dever cidadão. E nunca é tarde para aprender (e ensinar) a sê-lo.

Maria Fernanda Santos Souza é mentora na Teach For Portugal. Brasileira, mestranda em Educação e Literacia Física, foi co-fundadora dos Global Shapers em São Luís, no Brasil, e trabalhou na ONG global AIESEC durante quatro anos. É Alumni do programa de liderança do governo dos Estados Unidos, Young Leaders of the Americas Initiative. Já viveu em três países e considera-se uma cidadã global.

O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.