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Desengane-se quem pensar que Armamar é um offshore financeiro, cheio de sedes fiscais de instituições financeiras e onde nas ruas circulam Rolls Royces em ouro. Não é nada disso, até porque o liberalismo é algo que diz respeito às pessoas comuns e não apenas à alta finança. Armamar é um pequeno concelho no norte do distrito de Viseu, que vive fundamentalmente da agricultura e de algum turismo. Como tantas outras, é uma terra de emigração severamente afetada pela desertificação. Mas como é que no Portugal esquecido podemos encontrar um exemplo do triunfo de liberalismo?
O concelho de Armamar, está dividido entre duas realidades separadas pela geografia, com a altitude a variar entre os 70m junto ao Rio Douro e os 950m nas montanhas já na Beira Alta. O microclima do Douro e os solos xistosos deram origem a condições únicas no mundo para o cultivo da vinha, sendo por isso Armamar uma terra de Vinho do Porto. Na parte mais alta do concelho, até ao fim da década de 1970, produzia batatas, milho, centeio, cevada, algum trigo, castanhas e o outrora célebre cabrito de Armamar. Escusado será dizer, que a parte do concelho onde predomina o cultivo da vinha, é historicamente mais rica do que a parte onde a agricultura era fundamentalmente de subsistência.
Na segunda metade do séc. XX, D. Francisco Maria Martinho de Almeida Manuel de Vilhena, 9.º Conde de Vila Flor, engenheiro agrónomo de formação, resolveu testar o plantio de um pomar de macieiras na parte mais alta do concelho de Armamar. Esta experiência revelar-se-ia um enorme sucesso e mudaria o destino de Armamar e de toda a região. O clima frio no inverno proporcionado pela altitude, dava às macieiras as condições ótimas para os ciclos de dormência, ao passo que temperatura moderada do verão era a ideal para os períodos lentos de crescimento e de maturação. Ao aperceberem-se do sucesso da experiência do Conde de Vila Flor, os agricultores da parte mais alta do Concelho de Armamar, começaram a transformar a sua agricultura de subsistência, numa agricultura de mercado voltada para a produção de maçãs. Começava desta forma aquilo que se viria a transformar num cluster de produção de frutas, que mais tarde se estenderia aos concelhos vizinhos.
Desde o tempo do Marquês do Pombal, que a produção e comercialização de Vinho do Porto, obedece a uma rigorosa regulação. É verdade que Sebastião José de Carvalho e Melo tinha em mente uma preocupação legitima com a qualidade do Vinho do Porto, por isso tratou de constituir uma região demarcada e rigorosos regulamentos de produção e comercialização. Mas também convém referir, que por debaixo da preocupação com a qualidade, existia uma intenção altamente protecionista. No tempo do Estado Novo, com o objetivo de condicionar a oferta, seria constituída uma das maiores e poderosas corporações da economia portuguesa da época. A Casa do Douro encarnou na perfeição o espírito corporativista do regime de Dr. Salazar. Primeiramente com Pombal e mais tarde com Salazar, a Região Demarcada do Douro, tem estado sujeita a um forte condicionamento industrial, que visa proteger os negócios existentes, contra a concorrência dos que queiram entrar no negócio da produção e comercialização do Vinho do Porto.
Enquanto na parte mais alta do concelho de Armamar a produção agrícola de maçãs está completamente desregulada, mandando apenas a lei da oferta e da procura, na parte mais baixa a produção de vinho tem fortes condicionamentos. Por exemplo; Numa vinha que produz vinte pipas de vinho, apenas pode existir autorização para se transformarem em Vinho do Porto dez pipas. Se um agricultor quiser plantar uma nova vinha, terá de requerer autorização do Instituto do Vinho do Porto, que pode não dar deferimento. Para que uma empresa possa comercializar Vinho do Porto, terá de constituir um stock de pelo menos 75 mil litros de Vinho do Porto, o que na prática impede os pequenos produtores de entrarem na comercialização. A aguardente fina, usada para a produção de Vinho do Porto, tem a sua produção e comercialização, fortemente condicionada. Todas estas limitações põem na mão das grandes empesas a comercialização, ao mesmo tempo, que estas, por escassez provocada pela regulação, são obrigadas a comprar as uvas aos pequenos produtores. Ao comprarem as uvas, compram também as autorizações de transformação do mosto em Vinho do Porto. Na vindima, uma pipa de Vinho do Porto (750Kg de uvas) pode valer a um pequeno produtor cerca d 1200€, ao passo que uma pipa de vinho de mesa ronda os 400€. Perante este diferencial de preços, muitos agricultores optam apenas por venderem a autorização de transformação de mosto em Vinho do Porto, deixando as vinhas sem tratamentos, garantindo apenas que as videiras não secam.
Até agora, isto tem funcionado mais ou menos bem, de tal forma que os pequenos produtores são os primeiros a defenderem este status quo. Ao mesmo tempo, esta política tem levado à concentração da terra nas mãos de grandes empresas, em detrimento da pequena propriedade. Claro está que isto tem impulsionado fortemente a desertificação. Em 2024, uma conjugação de fatores, levou a que os grandes protutores de vinho, não comprassem as uvas aos pequenos produtores. Isto fez com que muitas uvas tenham ficado por vindimar. Enquanto os vitivinicultores de Armamar, protegidos por toneladas de regulamentação, desesperavam ao verem as suas uvas a apodrecerem nas videiras, os fruticultores a trabalharem na lógica de mercado, faziam a sua vida normal na certeza que teriam onde armazenar ou a quem venderem as suas maçãs.
No Douro, a economia de Armamar está a diminuir a sua dependência do vinho (altamente regulado) e a aumentar a dependência do turismo (desregulado). Nesta parte do concelho, os donos das quintas são fundamentalmente pessoas externas à região, por consequência, apenas uma parte muito pequena da riqueza gerada fica no território de Armamar.
Na parte alta do concelho o cenário é completamente diferente. Os fruticultores podem produzir o que quiserem, como quiserem e nas quantidades que conseguirem. Este sector está prestes a atingir as 100 mil toneladas de maçãs e a aumentar muito a produção de cerejas, peras, ameixas, etc. Graças ao reinvestimento dos lucros, ao crédito e às ajudas da União Europeia, vários empresários armamarenses conseguiram alcançar uma escala suficientemente grande para fornecerem as cadeias de abastecimento nacionais. Outros, mais pequenos, formaram sociedades para ganharem escala ou adquiriram pontos de venda em marcados abastecedores. Muitos destes produtores começaram do zero, outros herdaram pequenas explorações que modernizaram e ampliaram. Quem os ouvir falar ficará com a sensação que as suas vidas são a pior coisa do mundo, porque não têm nada garantido, porque se esquecem do que já alcançaram e acima de tudo porque querem continuar a crescer.
Os fruticultores de Armamar não são donos de multinacionais na área da produção agrícola, mas porque tiveram o incentivo certo, conseguem hoje colocar os seus produtos em países de Africa, América e Ásia. Perante os prejuízos sistemáticos causados pelo granizo, através da Associação de Fruticultores de Armamar, foram investidos vários milhões de euros na instalação de um sistema anti granizo. Depois da sua instalação (há 5 anos), os pomares nunca mais foram afetados, ao passo que as vinhas do Douro são sistematicamente destruídas.
Investidores externos (um deles estrangeiro), vieram investir em Armamar no armazenamento de maçãs, o que levou a um substancial aumento da produção. É notável que um pequeno concelho como Armamar, consiga produzir quase 30% das maçãs portuguesas. Escusado será dizer que é na parte mais alta do concelho que mais se faz sentir a falta de mão-de-obra e por consequência tem atraído mais imigrantes. Ao contrário do Douro, os donos dos pomares são de Armamar e por consequência, grande parte da riqueza gerada fica no concelho. O símbolo heráldico de Armamar são cinco cachos de uvas, enquanto o concelho se auto denomina Capital da Maçã de Montanha. Anualmente, a Câmara Municipal de Armamar organiza um certame intitulado Feira da Maçã. Esta contradição entre a história e a atualidade, mostra a importância económica que o vinho teve no passado, mas que perdeu para a fruticultura. Esta dicotomia entre dois modelos económicos e os seus resultados, mostra que tipo de política económica funciona de facto.
O exemplo de Armamar, torna evidente até que ponto as limitações à produção, a falta de concorrência e por consequência a ausência de fenómenos de destruição criativa, pode levar a economia para a estagnação. A regulação excessiva está assente num rol interminável de boas intenções, mas que sempre prejudicam aqueles a quem jura defender. As vítimas, iludidas pela proteção da regulação, deixaram de ter incentivos para inovarem e investirem nos seus negócios. Em Portugal, demasiadas empresas e cidadãos estão dependentes do Estado ou da sua proteção. Este incentivo errado, leva a que os portugueses sejam avessos ao risco. Isto não vai mudar enquanto a governação do país consistir apenas numa lógica redistributiva da pouca riqueza que é criada. Precisamos de reformas estruturais que tornem os portugueses parecidos aos fruticultores de Armamar. Reformas que nos façam sentir inseguros e que por isso nos deem o incentivo certo para arriscar, investir e inovar.
Agradecimento especial ao Miguel Guedes pela ajuda na realização deste artigo.