Eram tempos lixados.
O 25 de Abril teria pouco mais de meia dúzia de anos e as polícias eram sítios cheios de pessoas “atentas, reverendas e obrigadas”. E engravatadas. Era aconselhável que, quem tivesse alguma coisa a dizer, o fizesse precedendo o que diria de “salvo melhor opinião da parte de V. Exª”. Eram coutadas repartidas entre magistrados e militares, ambos com visões distorcidas sobre a actividade policial em qualquer das suas vertentes: os primeiros privilegiando as minudências processuais mas sem a menor ideia do que fosse “a rua”; os segundos achando que à cachaporra tudo se resolvia. Havia “Autos de Notícia” onde se narrava que fora furtada uma “codaque da marca Nikon”, se informava que para controlar a situação houvera que fazer uso “da força física que me está distribuída” ou onde, em sede de considerações finais, se levantava a hipótese de o suspeito ser um “homem sexual”.
À volta não era muito diferente. Não se pense que as polícias tinham o exclusivo do atavismo. Mas parecia que estava tudo a mexer e a mudar mais depressa. Talvez por isso tenha havido quem começasse a pensar em maneiras de acelerar o “aggiornamento” policial.
O método foi o geral. Estando a sociedade portuguesa a tentar equiparar-se ao modelo da generalidade das sociedades europeias ocidentais havia que promover a equiparação do modelo de organização e funcionamento da(s) polícia(s) portuguesa(s) a um correspondente modelo europeu. E, se tal modelo existia, uma das suas características era o generalizado reconhecimento do sindicalismo policial. Este foi, assim, encarado como uma via para promover e acelerar a mudança no sentido de uma polícia mais sintonizada com o pulsar da sociedade, mais capaz de acompanhar as profundas e rápidas mudanças que continuavam a ocorrer, em suma: uma polícia capaz de prestar um melhor serviço à comunidade. Claro que, também se pensava nas condições de trabalho. Mas a motivação principal de uma parte significativa do núcleo promotor do sindicalismo na polícia era a sua modernização e adequação à nova realidade.
Depois de alguns ziguezagues e vários episódios pícaros, uma assembleia constituinte reúne em Março de 1983 e nasce o primeiro sindicato no âmbito policial, o da Polícia Judiciária.
Na PSP também já havia movimentações no mesmo sentido, na altura sob a égide do Comissário Santinhos que vem a passar o testemunho ao José Carreira. Mas o processo foi muito mais turbulento (e molhado…) e só passados vários anos houve um generalizado reconhecimento do sindicalismo policial por parte do poder político.
Embora este bosquejo histórico tenha que ser necessariamente sucinto a verdade obriga a que também fique registado que a máquina do PCP sempre esteve presente em todos estes processos, promovendo-os e apoiando-os das mais variadas maneiras.
O tempo passou, a ambição primeva de equiparar Portugal ao resto da Europa foi alcançada e entrou-se numa era de normalidade sindical policial.
Só que — e, se calhar, é mesmo pecha da sociedade portuguesa- passou-se do oito para o oitenta.
Passou-se de uma empresa quase clandestina, em que alguns, sobretudo na PSP, tiverem que pagar uma taxa pela sua ousadia, para uma situação em que, pelo menos na imagem que a comunicação social transmite, quem manda nas Polícias são os Sindicatos (e talvez também uns senhores duns observatórios, que nunca ninguém viu em nenhuma operação policial; mas esses ficam para outra altura…).
É que os vários líderes sindicais atropelam-se para perorar sobre a manutenção das viaturas, sobre a operação de captura de um foragido depois de terem discorrido sobre as circunstâncias da fuga; abordam sociológica, antropológica e políticamente as várias manifestações do fenómeno criminal e ainda têm tempo para avaliar a (falta de) qualidade do armamento que está para ser adquirido e a inadequação das aplicações informáticas que correm nos diversos sistemas. O que é que tudo isto e muito mais tem a ver com o núcleo duro e exclusivo da actividade sindical , cuja densificação legal, jurisprudencial e doutrinária se pode resumir às “condições da prestação de trabalho dos associados,” é algo que não é fácil de explicar.
Como é que se chegou aqui? Como é que, por exemplo, a propósito da mais recente fuga de argelinos do aeroporto de Lisboa, tenham vindo ao palco diversos sindicalistas (até do pessoal administrativo de SEF) e, quer tutela, quer Direcções, tenham passado despercebidas?
Terá sido um trajecto com três etapas.
A primeira passou -fruto de ignorância, má fé ou tudo junto- por um espúrio alargamento do escopo da actividade sindical que acaba por se traduzir numa quase co-gestão. Será que o interlocutor de um Sindicato é o Director-Geral? Que respostas pode um Director-Geral dar a eventuais reivindicações em sede de remunerações, horários de trabalho, férias, feriados, faltas, horas extraordinárias, subsídios…? Se nenhumas, o que é que um sindicato -que não seja co-gestor- tem a tratar com um Director-Geral?
A segunda passa por uma estratégia de instrumentalização dos sindicatos no sentido de estes se prestarem a serem uma almofada amortecedora para as Direcções e tutela da natural (e, até, salutar, se bem gerida) conflitualidade. Em troca são dadas umas tantas facilidades -instalações, consumos- e umas mordomias aos dirigentes -viaturas, telemóveis.
A terceira passa por uma acentuada confluência dos interesses de fontes com jornalistas: eu dou-te uma “cacha” (e a apetência por “cachas” na secção do crime é tão grande…) e tu dás impacto mediático às minhas iniciativas sindicais.
A iniciativa governamental de alterar a lei sindical da PSP apresentada recentemente na Assembleia da República vai sanar todas estas maleitas?
Dificilmente. Por um lado, porque os vícios já enquistaram. Por outro, o exercício da actividade sindical por parte de outros órgãos de polícia criminal — nomeadamente PJ e SEF — é de molde a levantar os mesmos problemas que esta iniciativa legal tenta resolver.
Mas, pelo menos — Aleluia! — alguém reparou que já está a ser demais…
Polícia aposentado, antigo Inspector-Geral das Actividades Económicas (1998/2001)