As eleições na Ordem dos Médicos (OM) e a escolha do Bastonário têm interesse público. Decorrerão após a Pandemia durante a qual a OM teve actuação exemplar, num contexto de mudança na governação da Saúde e de crise na Profissão Médica e suas carreiras. Tempo e Oportunidade para reflexão isenta e desinteressada sobre a Ordem, os médicos e novos desafios em época de incerteza.

A missão da OM, para cuja prossecução integral o Estado lhe conferiu autonomia, independência e autorregulação, poderá resumir-se a três objectivos lineares: defender a Sociedade dos Médicos, os Médicos da Sociedade e promover a Saúde e os Direitos dos Doentes.

Defender a Sociedade dos Médicos (primum non nocere)

Pela Educação Médica e o poder disciplinar sobre os médicos. Intervenção limitada no Curso Médico (pré-graduação), mas com poder exclusivo de concessão da carteira profissional sem a qual não se pode praticar Medicina nem concorrer aos Internatos de Especialidade. Bem mais relevante na Pós-Graduação – aprendizagem e treino duma Especialidade – onde, através dos seus Colégios de Especialidade, propõe e decide: i) definição dos critérios técnicos e científicos da formação, ii) avaliação da idoneidade formativa, parcial ou total, das instituições, iii) proposta do número adequado de candidatos ao internato segundo a capacidade formativa e iv) certificação de competência para o exercício de especialidade médica mediante exame por júri nacional.

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Área de conflito potencial perante carências notórias em certas especialidades. Expressão do poder médico corporativo que importa controlar ou da nossa responsabilidade indeclinável na defesa de valores fundamentais do profissionalismo médico? Há um equilíbrio indispensável entre necessidades e qualidade da formação e se carências poderão pôr em causa a disponibilização de serviços justificando, para alguns, intervenção superior contra parecer da Ordem, o risco de formação insuficiente sem treino adequado, que só os pares poderão e deverão avaliar com objectividade e isenção, será bem pior para a sociedade e a boa medicina. Nas direcções dos Colégios de Especialidade os médicos são eleitos pelos colegas, pelo que será legitima a questão: teremos pautado a nossa actuação por rigor e isenção e sem perfume corporativista? Acção que exige diálogo sério, informado e bem fundamentado entre OM e Ministério da Saúde, procurando maximizar recursos, públicos, privados e outros com idoneidade formativa reconhecida pelos colégios de especialidade.

A avaliação nos exames finais de Internato é outro assunto que me suscita perplexidade. Será que todos os candidatos são excelentes como as notas (mínimo 19 valores, menos é muito invulgar!) parecem sugerir? Estaremos realmente a prestar bom serviço ao dever de meritocracia e à responsabilidade que a sociedade nos exige e o Estado nos atribui? Julgo necessário mudar o modelo destas avaliações, o que requer coragem e decisão. Bem como a necessidade estatutária de Recertificação Profissional, entendida como confirmação da competência dos médicos. Assunto controverso, desnecessário para uns, por ser a Medicina a profissão publicamente mais escrutinada, relembrando, e bem, a nossa maratona de concursos e exames em regra terminados pelos 40-45 anos, indispensável para outros, em que me incluo, que, sem desvalorizar esse argumento, consideram que o ritmo de progresso e evolução da prática médica é avassalador e constitui desafio à nossa competência profissional e necessidade de actualização permanente, e que esta é não só um dever individual irrecusável como uma responsabilidade institucional da Ordem perante a Sociedade.

Não precisará de mais exames, mas de comprovação oficial de acções de formação certificadas e prova de prática continuada, individual ou institucional. Nas escolas médicas procuramos incutir nos alunos este dever de aprendizagem continuada para a vida, life-long learning, e os valores da Ética, da Moral e das regras de conduta do profissionalismo médico que corporizam a Deontologia da Profissão Médica e de que a OM é, também, guardião.

Em conjunto com o poder disciplinar esclarecido, isento e rápido, estes serão os instrumentos fundamentais para defender a Sociedade dos Médicos.

Defender os médicos da sociedade

A OM representa todos os médicos nas suas diversas circunstâncias laborais e a sua defesa assenta em dois pilares. O primeiro, a exigência de condições indispensáveis à qualidade do exercício médico nas instituições públicas, privadas e do sistema social. O segundo, isenção, independência, sem corporativismo e com celeridade, na apreciação de queixas dos doentes e instituições sobre erros ou intercorrências que comprometam o sucesso da acção médica e a saúde dos doentes, a credibilidade profissional e o prestígio da Medicina. Estando vedadas à Ordem, estatutariamente, as disputas salariais e intervenção económica directa na Saúde, nada impede a defesa da dignidade e especificidade do trabalho médico e o reconhecimento adequado pela sociedade.

Promoção da Saúde e a Defesa dos Direitos dos Doentes

São centro, propósito e finalidade da nossa a acção, a nossa bússola desde o juramento hipocrático. Primado do juramento sobre o dever de obediência é obrigação ética e moral da Profissão Médica que nos colocará em conflito pelas condições de trabalho adequadas e pela defesa do acesso à Saúde e aos cuidados médicos de qualidade, com equidade, em tempo oportuno e sem discriminação económica ou social.

Outros desafios se configuram. A partilha de práticas tradicionalmente exclusivas dos médicos – professional sharing – a revolução digital, desde a mudança na interacção dos cidadãos com os serviços de Saúde à interface com algoritmos de diagnóstico que reduzindo variabilidade humana diminuem o risco de erro médico. Uma nova realidade e um desafio à liderança e responsabilidade médicas. E prevenção de potenciais conflitos de interesse pelo respeito da Ética e da Deontologia profissional.

Competência, responsabilidade, dedicação, empatia, espírito de serviço, respeito pela Ética são valores que constituem o eixo da roda, que permitirão incorporar progresso, prosseguir combate pelas reformas necessárias, pelos doentes e contra a desqualificação da educação e formação médicas, pela meritocracia profissional e por governação clínica moderna nas instituições de Saúde, que promova qualidade dos serviços e desenvolvimento dos profissionais. Caderno de encargos dos candidatos a Bastonário, de quem se espera independência do poder e interesses, desapego pessoal, carácter e compromisso com os princípios da sociedade aberta e democrática e do bem comum que são património da Ordem dos Médicos.

Ventos de mudança na Saúde? Esperemos que sim, pelo superior interesse dos doentes a nossa bússola. À Ordem e Bastonário pede-se fidelidade à missão e conhecimento da rota, para que mesmo na tormenta até os ventos desfavoráveis sirvam para chegar a bom porto.