Neste Sábado, 24 de Junho, vai ser inaugurada em Fátima uma estátua do cardeal József Mindszenty, antigo Primaz da Hungria, um sacerdote e prelado que, pelo seu permanente testemunho em defesa da fé, da justiça e da verdade, foi perseguido pelos vários regimes que foram dominando a história movimentada e trágica do seu país, no século XX.
Logo em 1919, foi preso pela efémera República Soviética da Hungria proclamada por Bela Kun com apoio de Lenine, que governou o país durante quatro meses. No final dos anos 30, Mindszenty combateu o partido Cruzes de Flecha, e os nazis húngaros de Ferenc Szálasi encarceraram-no quando, em 1944-45, chegaram ao poder. Foi nesse tempo que dois diplomatas portugueses, com a cobertura do Governo de Lisboa, o Embaixador Sampaio Garrido e o Encarregado de Negócios Teixeira Branquinho, salvaram, em Budapeste, mais de mil judeus, dando-lhes passaportes portugueses.
Mas o pior para Mindszenty e para os católicos húngaros chegou com as tropas soviéticas e o regime comunista em 1945. Mindszenty, feito Cardeal e nomeado Primaz da Hungria e Arcebispo de Esztergon por Pio XII em Fevereiro de 1946 seria preso a seguir ao dia de Natal de 1948. Na prisão foi torturado e obrigado a confessar uma extensa lista de delitos, desde o roubo da coroa de Santo Estêvão, à restauração dos Habsburgo e à preparação da Terceira Guerra Mundial. Entretanto, tivera o cuidado de deixar um documento em que reiterava as suas convicções e prevenia os fiéis de que tudo o que dissesse contrário à fé e à razão, devia ser ignorado porque se deveria à a coacção.
Em 30 de Outubro de 1956, o Cardeal foi libertado pelos revoltosos anti-comunistas; e em 4 de Novembro, perante o esmagamento da revolta pelas tropas russas, conseguiu chegar à embaixada dos Estados Unidos e pedir asilo político. Ali ficou 15 anos, a mais longa pena de “residência fixa” dos tempos modernos. Em 1971, o Papa Paulo VI negociou com o líder comunista húngaro Janos Kadar a saída de Mindszenty para o exílio em Viena, onde morreu em1975.
Perseguições
Os cristãos começaram a ser perseguidos no império romano, de Nero a Diocleciano, com alguns intervalos de tolerância. Foram então bastante maltratados, submetidos a torturas e vexames de toda a ordem; mas embora o poder dos imperadores fosse absoluto e não precisasse de sufrágio popular, as medidas violentas eram geralmente precedidas de rumores e acusações caluniosas para preparar o terreno e legitimar a perseguição aos olhos do povo comum. Por isso os cristãos foram acusados por Nero do incêndio de Roma. Em qualquer caso, as duas formas de atacar uma pessoa, um grupo, uma crença ou uma religião – a calúnia e o assassinato moral e a violência material e o assassinato físico – seriam usadas em conjunto ou alternadamente contra os cristãos. As perseguições da chamada “Era dos Mártires” duraram até ao Édito de Milão, em 313, mas ao longo da História, os cristãos voltariam a ser perseguidos.
E diga-se que também perseguiriam; e que, em nome do que cada parte considerava a ortodoxia e a verdadeira Fé, também se perseguiriam e exterminariam entre si. Basta lembrar as guerras religiosas e os seus massacres cruzados, em França e na Alemanha, nos séculos XVI e XVII.
As perseguições aos cristãos na Modernidade chegariam com a segunda “Era dos Mártires” inaugurada pela Revolução Francesa, no final do século XVIII. No séc. XX, a Revolução Russa e a Revolução Mexicana, inspiradas pelo ateísmo e laicismo militantes continuariam uma “caça ao cristão” que ser repetiria aqui bem perto, em Espanha, durante a Segunda República. Stanley Paine foi bem claro quando escreveu que, em Espanha, “a perseguição à Igreja Católica foi a maior na Europa Ocidental”. Começara com uma série de legislações discriminatórias e, a partir do governo da Frente Popular e do levantamento nacional de 18 de Julho, atingiria o apogeu.
Quando veio a República, em 1931, numa Espanha com 23 milhões de habitantes, havia 111.000 consagrados. Mais de 34.000 eram sacerdotes diocesanos e cerca de 60.000 eram religiosos e religiosas de congregações monásticas. Havia ainda uns 14.000 seminaristas e cerca de 5.000 conventos e casas de religiosos.
Esta Igreja, sobre a qual Ortega y Gasset e Salvador Madariaga pronunciavam juízos muito negativos, mereceria também uma apreciação crítica do líder católico da direitista CEDA – José Maria Gil Robles – e uma dura análise do próprio núncio papal, Frederico Tedeschini, que, nos seus informe a Roma, reconhecia o divórcio entre a Igreja e a sociedade, as “falhas do clero espanhol que não pregava o Evangelho”, a ignorância do povo de Deus que “não sabia sequer o Padre Nosso” e o estado lastimoso dos seminários. Deste negro retrato da Igreja em Espanha, Tedeschini concluía que “talvez a República servisse para despertar as consciências dos católicos”, ou seja, ao quebrar a protecção e a cumplicidade com o poder, ao expor a Igreja à hostilidade e à perseguição, talvez a República acabasse por renovar e melhorar o clero e a comunidade católica.
Foi a este respeito que o historiador Vicente Cárcel Orti publicou recentemente: La Persecucion Religiosa en España durante la II República (1931-1939). Cárcel elucida-nos sobre o estado dos seminários espanhóis no princípio do século XX, onde reinavam a confusão e a indisciplina. Os sucessivos núncios papais dos pontificados de Pio X (1903-1914) e Bento XV (1914-1922) foram dando nota a Roma destes problemas e das iniciativas para os resolver, algumas partidas de leigos empenhados, como os criadores da Associación Católica Nacional de Propagandistas, animada pelo padre jesuíta Angel Ayala; ou Manuel Loring, conde de Mieres, que se prontificava a financiar uma universidade católica. A incultura, a falta de sentido social, e a deficiente formação dos sacerdotes eram referidas nesta correspondência dos núncios com Roma.
A hostilidade da República acabou, numa primeira fase, por melhorar, pela selecção. Segundo números citados por Cárcel, os quase 14.000 seminaristas de 1931 passaram a 7.400 em 1934, ou seja, mais de 40% abandonaram o Seminário. Quanto às origens sociais dos seminaristas, só cerca de 30% vinha de famílias pobres de agricultores. Dos 70% restantes, a maioria era de classe média – filhos de pequenos proprietários ou comerciantes – e 15% da classe média intelectual e da classe alta.
Em Espanha havia, a nível intelectual e popular, uma tradição anticlerical feita de propaganda, mentiras, meias mentiras e algumas verdades: a imagem prevalecente era a de uma Igreja que, secularmente, com o apoio da Monarquia, teria oprimido e policiado o pensamento, tomado conta de grandes riquezas e propriedades, pactuado com os poderosos e esquecido o Evangelho. Em 1906, em Barcelona, um político radical e maçon, Alexandre Lerroux, incitava assim os jovens seus partidários:
“Entrai à força na civilização decadente e miserável deste país sem sorte; destruí os seus templos, acabai com os seus deuses, levantai o véu das noviças e elevai-as à categoria de mães para virilizar a espécie. Não pareis diante dos sepulcros nem dos altares. Não há nada sagrado na terra. O povo é escravo da Igreja. Lutai, matai, morrei.”
A legislação da República em 1931 foi nesse sentido. Mas a verdadeira perseguição ia acontecer depois da vitória tangencial, em Fevereiro de 1936, da união das Esquerdas, conhecida como Frente Popular. Imediatamente a seguir à vitória, começaram as violências, com agressões a párocos, invasões de conventos e queima de igrejas. Porém, foi depois do levantamento militar de 18 de Julho que a matança chegou em força. Os órgãos de propaganda da Esquerda não pararam de denunciar a cumplicidade da Igreja com os “sediciosos fascistas”, o que levou a que as turbas – sobretudo de anarquistas e socialistas – se precipitassem na caça aos religiosos que, depois de detidos, humilhados e torturados, acabavam por ser levados para o “paseo”, mortos e abandonados.
Os números da matança
Cárcel dá, no seu livro, detalhes impressionantes, a que acrescenta quadros numéricos, também impressionantes: é claro que a grande maioria das vítimas são das áreas onde triunfaram os partidos da Frente Popular sobre os rebeldes, como na diocese de Madrid, onde foram assassinados 334 sacerdotes seculares, cerca de 1/3 dos 1.118 existentes; ou na de Barcelona, em que mataram 279 padres, 22% do total. Em Ciudad Real foram mortos 40% dos sacerdotes da diocese, em Barbastro quase 90% e em Ibiza 40%. No total, foram assassinados 4.184 sacerdotes. A este número há que juntar 2.365 religiosos e 283 religiosas.
No livro de Cárcel há pormenores sobre os lugares e as linhas de actuação dos perseguidores. Metade das vítimas foi morta nos dois primeiros meses que se seguiram ao levantamento militar. Ao mesmo tempo que se iniciavam as perseguições e massacres, o governo da República proclamava uma ampla amnistia aos presos comuns. Muitos destes amnistiados entraram de imediato para as milícias criadas para defender a República dos “facciosos”.
A perseguição variou também de acordo com a côr política dos responsáveis locais da Frente Popular; por exemplo, nas três províncias do País Vasco, dada a filiação católica do líder do PNV, José Antonio Aguirre, apenas 47 sacerdotes foram mortos e eram quase todos monárquicos carlistas.
Tudo se preparou friamente, como sublinharia o Papa Pio XI na Encíclica Divini Redemptoris sobre o comunismo, “com um ódio, uma barbárie e uma ferocidade que não se julgariam possíveis nos nossos dias”.
Não quero aqui transcrever as torturas humilhantes e as mortes horríveis que sofreram estes novos mártires, alguns queimados vivos e castrados nas praças de touros – mas convém que não caiam no esquecimento.
Os nossos mais brandos costumes – instituídos sobretudo a partir dos anos trinta – ainda não eram especialmente notórios na Primeira República; de qualquer forma, deixaram-nos muito longe da selvajaria e do sadismo dos “frente-populistas” espanhóis.
E hoje? A organização Open Doors International publica um índice global anual sobre a perseguição aos cristãos, com a lista de todos os ataques, desde a “opressão diária discreta” à “violência mais extrema” (ou, nas palavras do Papa Francisco, desde a perseguição “educada, disfarçada de cultura, modernidade e progresso” à perseguição “explícita”). Só entre Outubro de 2020 e Novembro de 2021, em 76 países, mais de 360 milhões de cristãos – católicos, ortodoxos, protestantes, baptistas, evangélicos, pentecostais – foram perseguidos; 5.898 foram mortos; o número de igrejas fechadas, atacadas e destruídas multiplicou-se para 5.110; e a percentagem de “cristãos detidos devido à sua fé” aumentou em 44% em relação ao ano anterior. Números que, sempre segundo a Open Doors International, têm vindo a crescer exponencialmente neste ano de 2023, prefigurando-se uma terceira “Era dos Mártires”.
Por cá, prefere-se a “perseguição diária” mais ou menos “discreta, educada e disfarçada de cultura, modernidade e progresso”, ou seja, privilegia-se o assassinato moral, que não dá cadeia; a acusação anónima, que permanece impune; e o linchamento mediático, que dá audiências, não ensanguenta a arena e mantém os assassinos atrás das tábuas, no aconchego das redacções e das régies.