Para os Aimarás, nativos da região andina que se eleva no Oeste da Bolívia, no Norte do Chile e no Sudeste do Peru, o passado e a memória surgem à frente no fio do tempo. Já o amanhã permanece atrás: ignoto, invisível. Nesse pedaço de mundo em que as montanhas tacteiam o céu, escondendo aldeias e caminhos derruídos, os dias futuros detêm-se na retaguarda, imersos numa corrente indomável que ruma para o infinito. O motivo é singelo e não espanta: vemos tão-só o que já aconteceu.

A língua aimará comprova e materializa o labiríntico conceito. A palavra nayra acolhe múltiplos sentidos: «olho», «à frente», «à vista», «passado». O termo qhipuru — literalmente, o dia (uru) que está atrás (qhipa) — indica um tempo futuro. Por sua vez, qhipurkama — que aglutina qhipa (atrás), uru (dia) e kama (até) — exprime surpreendentemente «até um dia», «adeus».

O tempo, «obscuro Inimigo que nos corrói o peito», como escreveu Baudelaire em As Flores do Mal (Relógio d’Água), não é igual para todos os povos. Corre mais depressa em alguns lugares, mais devagar noutros. O pêndulo do mais preciso dos relógios oscila mais em altitude do que à superfície. Envelhecemos, por isso, com o singular balanço da nossa própria realidade.

Como sustenta o físico italiano Carlo Rovelli em A Ordem do Tempo (Objectiva): «A Terra é uma grande massa e desacelera o tempo perto dela. Mais no vale e menos na montanha, porque a montanha está um pouco mais distante da Terra. […] O mundo não é como um pelotão que avança ao ritmo de um comandante.» Na verdade, muito antes de ser possível quantificar a flutuação, já Albert Einstein havia compreendido a inexorável influência de qualquer corpo no pulso da humanidade, pelo que continham inúmeros tempos as suas equações.

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O tempo é uma sinfonia: em cada ínfimo lugar, uma cadência única, uma vibração original e irrepetível que se impõe ao maestro e à orquestra. E nenhum andamento é mais perfeito ou genuíno, como nenhuma hora é mais fiel ou verdadeira. Afinal, nem o coração de dois amantes bate sempre em sincronia.

À semelhança do descompassado tiquetaquear do Universo, também as palavras se ligam a um corpo, a uma terra, a um chão. E, não raro, apenas se desvelam num ponto específico do planeta: num país, numa cidade, ou simplesmente no silêncio clandestino da rua, da casa ou do livro em que nasceram.

Umas sulcam o mundo e renascem com novas cores, novos sons. Outras permanecem na matriz, sentinelas em baluarte, emanando raios de luz desfocada e trémula, reflexos lunares em noite de tempestade. Na língua, na cultura e na raiz, a senha da nitidez.

Como refere Chomsky, citado por George Steiner em Extraterritorial (Relógio d’Água), quem conhece um idioma já «dominou um conjunto de regras e princípios» que determinam uma infinidade de frases, interpretando, por isso, «de forma espontânea uma gama indefinidamente alargada de expressões sem a mínima impressão de insuficiente familiaridade ou de estranheza».

A tradução aniquila distâncias e transforma vislumbres em realidade. «Tradução» vem do latim traductiōne, que significa precisamente «travessia». José Pedro Machado ensina, no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, que o termo latino exprime ainda o «acto de ser levado em triunfo», imagem que certamente bastaria para descrever e celebrar a migração de palavras: na literatura e na vida. Por sua vez, «tradutor» procede do latim traductōre, cujo sentido também não poderia ser mais evocativo: «o que conduz além, o que transfere».

Com a bravura e a fé do peregrino, o tradutor aceita a missão de unir o mundo às palavras. Desfia sentidos, disseca contextos e atira-nos, sem darmos conta, para um lugar mágico em que todas as obras — de todas as épocas — parecem ter sido escritas a pensar em nós. E, nas passagens mais ocultas e brumosas, cada tradutor segue a sua luz, a sua estrela, como intui Alberto Manguel em O Avesso da Tapeçaria (Tinta-da-china).

Para Jorge Luis Borges, a tradução é mero bosquejo do original. Para Javier Marías, amor à arte. Umas vezes, sombra, traição; outras, desengano, retrato. A metempsicose não se consuma, porém, sem a decisão final do leitor, a quem é confiada a chave das mensagens infiltradas nos poros de cada página.

Todas as línguas e dialectos acolhem uma miríade de termos que ancoram na História. Há metáforas, códigos e sinais acorrentados a povos, épocas, crenças, tradições. Nunca compreenderemos, por isso, o verdadeiro sentido de certas palavras sem pisar o seu chão, sem caminhar na terra em que foram geradas. São incontáveis os vocábulos que teimam em brilhar apenas debaixo de um céu. Eis alguns exemplos.

No mandarim, xiaoshun — literalmente, «devoção filial» — expressa o dever de os filhos amarem e respeitarem os pais. Com raízes na China antiga e nos ensinamentos de Confúcio, o termo absorve um sentimento ancestral, quase divino, que se estende além da vida. Traz-me à lembrança Morreste-me, de José Luís Peixoto: «Descansa, pai, dorme pequenino, que levo o teu nome e as tuas certezas e os teus sonhos no espaço dos meus. Descansa, não vou deixar que te aconteça mal. Não se aflija, pai. Sou forte nesta terra nos meus pés.»

Em Madagáscar, onde a religião se dilui nos sentidos, Andriamanitra significa «Deus», o «Príncipe Perfumado». Talvez aluda à brancura eterna das manhãs, cujo aroma dissipa o cheiro nocturno da terra seca. Curioso é ainda o vocábulo malgaxe adalahendry: pessoa ignorante, embora sábia em algumas coisas.

O cazaque criou uma palavra — deé — para suavizar uma situação pungente, especialmente quando se teme a reacção de alguém depois de um comentário jocoso ou estulto. Acompanha ainda a tímida e agónica confissão dos enamorados: «amo-te, deé».

No tsonga, língua banta falada pelo grupo étnico homónimo, que habita áreas do Norte de Moçambique e do Norte da África do Sul, a recusa em casar com alguém escolhido pela família pode ser expressa numa só palavra: tlatlavala.

Já o malaio não se exime às medições. Neste idioma austronésio, presente no Brunei, Indonésia, Malásia, Singapura e Tailândia, o espaço entre os dedos tem nome. A título de exemplo, jengkul indica a distância entre polegar e o indicador, enquanto ketengkeng define o intervalo entre o polegar e o dedo mínimo.

No Havai, foi cinzelado um vocábulo para designar as substâncias que se aglomeram e dançam como electrões no centro de um torvelinho: wilikoi. E outro para a resolução de problemas pelo diálogo e para a correcção do erro com amor e perdão: ho’oponopono.

Para não confundir admiradores e ouvintes, as letras de GoodMorningGoodMorningeHello, Goodbye, dos Beatles, dificilmente poderiam ser vertidas em cingalês, dado existir no Sri Lanka uma só palavra para «bom dia», «boa tarde», «boa noite» e «adeus». Ei-la: ayubowan.

Em certos casos, o indonésio opta pela concisão, pelo que alguns termos combinam duas características: mungil (minúsculo e bonito), merana (solitário e miserável), lencir (magro e alto), klimis (suave e brilhante).

Desengane-se quem julga serem os esquimós imunes à ansiedade. O inuíte, falado nas regiões árticas do Alasca, Canadá e Gronelândia, oferece um vocábulo para descrever o desassossego e a frustração glacial de quem espera: iktsuarpok.

E, nas noites persas cravejadas de estrelas, samir é aquele que conversa ao luar, sem temer o silêncio das montanhas nem a solidão do deserto.

A língua e o Universo têm códigos, enigmas, segredos. Vislumbramos tão-só as partículas de luz que se evadem por frestas e postigos. O reflexo ilude a essência. E a essência acolhe a verdade. Na corrente do tempo e das palavras, o infinito não é um mero passageiro.