O Passado

Tirando a extinção de um dos corpos, por se ter tornado desnecessário, o 25 de Abril não teve impacto imediato na organização e funcionamento das Polícias.

Durante muitos anos continuámos a ter muitos e diversos corpos de Polícia, que continuaram a servir, entre outras coisas, para distribuir poder, benesses e influência entre as várias corporações, sobretudo as corporações de topo do antigo regime e que continuaram a sê-lo no novo.

Os militares, que, ainda por cima, precisaram de acantonar o superavit de efectivos criado pelo fim da guerra do ultramar, mandavam na GNR, na GF (Guarda Fiscal, que veio a ser extinta em 1993), na PSP e na Polícia Marítima. Ocupavam o topo e as chefias intermédias das três primeiras e toda a estrutura da 3ª.

Os magistrados mandavam na PJ. Os inspectores eram magistrados do Ministério Público (situação alterada em 1978 com o novo estatuto do MP). Os Directores eram (normalmente) magistrados judiciais.

Depois, o Ministério da Agricultura tinha a Guarda Florestal, o da Economia a Inspecção-Geral das Actividades Económicas. O das Finanças tinha uma palavra a dizer na actividade da GF.

Numa caracterização sumária dos corpos principais, dada a sua vocação mais generalista, pode-se dizer que PSP (operando tendencialmente nas zonas urbanas) e GNR (operando tendencialmente nas zonas rurais) tinham a valência da ordem pública através de acções preventivas da prática de crimes. Quando estes eram cometidos, o único actor em cena passava a ser a PJ. Tinha o monopólio da investigação criminal, desde o furto de um auto-rádio ou de uma carteira no metro até ao homicídio, passando pelo tráfico de estupefacientes e a emissão de moeda falsa, entre outras entradas do vasto menú dos crimes.

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Este monopólio resultava desde logo do enquadramento legal e assentava num exclusivo da capacitação técnica para o exercício da investigação criminal. Só a PJ dispunha de um sistema articulado e centralizado de recolha e tratamento de informação policial e de perícia criminalística – directamente através de serviços próprios de lofoscopia (impressões digitais), indirectamente através do Laboratório de Polícia Científica (balística, análise de escrita e análises químicas diversas).

Este estado de coisas refletia-se, inevitavelmente, no estatuto do pessoal que integrava cada um destes corpos de Polícia. Não tanto ao nível do estatuto remuneratório que, sendo diferenciado não o era por aí além, mas sobretudo ao nível da imagem pública.   Logo à partida porque, trajando à civil, os agentes da PJ descolavam do monolitismo aparelhístico que um corpo uniformizado transmite e aproximavam-se das figuras romanceadas e normalmente simpáticas que a ficção literária há muito criara e o cinema recriara.

Depois, as circunstâncias do 25 de Abril e as caracterísicas do modo como a sua actividade é exercida, permitiram que fosse criado e alimentado o mito de a PJ ser uma polícia menos alinhada com o anterior regime que as restantes. Beneficiou, por arrastamento, do manto protector que resguardou magistraturas e outras áreas da administração da justiça dos muitos desmandos praticados e, novamente a ficção, mas também um pioneiro gabinete de imprensa, ajudaram a criar, junto da opinião pública, a imagem simplista de um reduto de “bons” num meio ocupado predominantemente por “maus”. “A Balada da Praia dos Cães”, livro e filme, são disto e do referido no anterior parágrado um exemplo, a que pode acrescer a série televisiva “Zé Gato”.

Não tardou a que este estatuto começasse a ser rentabilizado. As condições da economia da época não permitiam grandes prodigalidades, mas como entre essas condições estava a de a grande maioria das empresas de transportes públicos de passageiros estar nacionalizada, foi conferida aos agentes da PJ a faculdade de viajarem gratuitamente nesses transportes, mediante a exibição do cartão de livre-trânsito. Vieram também remunerações acessórias, sob a forma de subsídios (tecnicidade, renda de casa, risco) que inevitavelmente distorciam o estatuto remuneratório da Função Pública e desencadeavam processos reivindicativos da paridade por parte de outros sectores (nada de novo sob o sol, como já tinha sido notado…)

Mas a consagração de um estatuto remuneratório da PJ significativamente diferenciado relativamente aos restantes corpos de polícia surge em 1982 com a indexação dos vencimentos do pessoal de investigação aos dos magistrados do MP. Era a consagração em toda a linha do estatuto, embora informal, de “Polícia de elite”.

A base em que assentava a excepcionalidade do estatuto da PJ – o monopólio da investigação criminal – começou a ser abalada com o Código do Processo Penal que entrou em vigor em 1986. Cria a figura do “Órgão de Polícia Criminal” – qualquer organismo da AP ao qual a respectiva LO confira esse estatuto – no qual o MP, titular da acção penal, delega a competência para conduzir investigações criminais.

O Presente

Foram ainda necessários uns bons anos até que o monopólio que a PJ detinha sobre a valência investigação criminal da actividade policial começasse a ser seriamente abalado. De jure cessara, mas, de facto, a exclusividade do know-how, dos recursos técnicos e um denodado empenho em sabotar tudo o que se pudesse traduzir em capacitação de outras polícias para intervirem na invesigação criminal ainda protegeram o sacrossanto monopólio.

Mas, a sociedade foi mudando, as gerações rendendo-se, os estatutos alterando-se, a formação aprimorando-se, até que as Polícias deixaram de ser coutadas de corporações e passaram, cada uma delas, a constituir uma nova corporação.

Os dirigentes de topo já não vêm de fora. São “prata da casa” que progrediu nos universos relativamente limitados de cada corpo, facto que permite entender o alinhamento contra-natura que muitas vezes se observa nas praxis sindical e directiva. Formam descaradas “santas alianças” para defenderem a “sua” Polícia das outras, os seus interesses, que não podem ficar atrás dos das outras.

Tudo perfeitamente natural e compreensível, no competitivo mercado em que se transformou o exercício da actividade policial em Portugal. Excepto pelo facto de ser uma competição distorcida pela ausência de um adequado escrutínio da actividade desenvolvida, pelo que a reivindicação é apenas sustentada pelo clamor e o espalhafato.

O que hoje se constata é que o fosso que até 1986 separava a PJ das restantes Polícias veio a ser progressivamente preenchido, quer no plano do know-how quer dos recursos técnicos. Para além dos estatutos remuneratórios, já pouco distingue, em termos da capacidade técnico-profissional para o exercício de qualquer das valências da função policial, o inspector da PJ, do agente da PSP ou do militar da GNR.

O elefante na sala, que todos se esforçam em não ver, é este: havia uma Polícia – o SEF – com um estatuto remuneratório global alinhado com o da PJ. Foi extinta e as suas funções e quadros policiais repartidos pelos três corpos de Polícia generalistas. Ora, se quadros e funções são intermutáveis, porque não o são as remunerações?

Foi no que deu uma “reforma” feita para desviar atenções, na esperança de que mudando alguma coisa, tudo continuasse na mesma.

Haverá quem, com razão, diga que “há males que vêm por bem”.

O Futuro

A manutenção do quadro actual afigura-se muito difícil de sustentar, pelo que talvez seja chegada a altura de reformar a sério.

As razões que sustentam o actual surto reivindicativo – a par de muitos outros problemas, menos conhecidos por não afectarem o bolso dos polícias: só o dos contribuintes – radicam na atomização do modelo policial português.

Há três anos, num artigo intitulado “Desinventar Polícias” que o Observador também publicou, depois de discorrer sobre a forma como outros países europeus lidaram e ultrapasssaram problemas idênticos há mais de 40 anos, terminava assim:

E em Portugal? Em Portugal continuamos atrasados. Permitam a boutade: atrasámo-nos nos secs. XVIII e XIX na revolução industrial e atrasámo-nos no XX na revolução policial. Mas lá chegaremos, não por qualquer determinismo histórico mas, mais prosaicamente, pela muita força do que tem que ser.

O panorama do nosso modelo policial, dificilmente sustentável a longo prazo, caracteriza-se por:

  • Em vez de uma escola de polícia com massa crítica suficiente para produzir pensamento, doutrina e sistematizar guias de acção prática (ou BoK, se preferirem), temos umas baiúcas distribuídas pelos vários corpos que nem sebentas, quanto mais Bodies of Knowledgeconseguem produzir (para ser mais concreto, são cinco as baíúcas: duas da PSP – Lisboa, Lgº do Calvário, e Torres Novas; duas da GNR – Queluz e Portalegre; uma da PJ – Barro – Loures. SEF, ASAE e outros OPCs satisfazem individual e pontualmente as necessidades de formação);
  • Durante muitos anos existiram quatro redes de comunicações, devidamente insularizadas. Como não há muito por onde escolher em termos de locais ideais para a instalação de antenas, na Arrábida, na Fóia, na Lousã, no Caramulo e por aí adiante, lá tínhamos os ramalhetes de antenas da PSP, da GNR, da PJ e do SEF. Quatro diferentes equipas de manutenção iam lá regularmente e pontualmente quando havia temporais. Espero que o conturbado processo SIRESP tenha ultrapassado esta aberração;
  • Todas as restantes áreas de apoio também estão multiplicadas pelo número de organismos. São soluções que aumentam significativamente o número de empregos para distribuir, normalmente pela via de contratação de “eventuais” extra-quadros, com tendência para serem das relações dos funcionários dos quadros, que periodicamente passam a integrar os quadros sem qualquer processo de selecção.

O modelo vigente tem vantagens. Para um certo tipo de fazer política: benesses para distribuir. Para uma certa maneira de ser português: benesses para receber. Para os interesses instalados: é mais fácil uma corporação capturar uma organização pequena e frágil, que uma grande, bem estruturada e organizada. Mas os custos – de eficiência, de contexto e financeiros – são enormes e insustentáveis.

O núcleo duro de uma polícia não pode ser a investigação criminal ou o controlo de fronteiras ou a circulação rodoviária ou a protecção da natureza ou o controlo de armas ou a protecção de personalidades ou a ordem pública ou a prevenção criminal. O núcleo duro de uma polícia é o resultado disto tudo, que é muito mais do que a soma das partes: é a segurança, que só se atinge pelo funcionamento articulado de cada uma daquelas, e outras, valências. Daí a necessidade de desinventar polícias.

Em vez de insistir num modelo que, se não tem bastas provas dadas da sua ineficiência e ineficácia não é por ser eficiente e eficaz, mas por nunca ter sido devidamente escrutinado, não seria de adoptar um modelo menos atomizado e mais concentrado, a exemplo de países com uma cultura e história muito próximas das nossas?

Não será um modelo perfeito, a transição não será fácil (já foi feita, tanto em França como em Espanha), mas pior que o que temos é impossível. Basta olhar para as economias de escala, no que toca à organização, para a diversidade e flexibilidade de carreiras de que disporão as novas gerações de polícias. E para a possibilidade de ultrapassar o ambiente malsão que os polícias instalaram no seio das Polícias.

À consideração de quem vai a votos e de quem vai votar no próximo dia 10 de março.