Confesso que nunca fui grande defensor das provas de aferição no 2.º ano de escolaridade. Não só porque considero que os resultados que nos chegam nos relatórios podem ser enganadores, mas também porque estamos a falar de crianças de 8 anos, que são facilmente condicionáveis quando expostas a situação formal de ter de prestar provas.

Para além disso, por se tratar de provas que visam apenas fazer uma aferição das aprendizagens, sem peso na avaliação, justificável pelo ano em causa, são encaradas por nós próprios como um instrumento de avaliação pouco rigoroso.

Tendo a defender um instrumento de avaliação mais rigoroso, o exame com peso na avaliação final, no final dos ciclos, para controlo e monitorização das aprendizagens. Não sendo um instrumento sem defeitos é, até prova em contrário, o que melhor imagem nos dá da qualidade das aprendizagens dos alunos no final de cada ciclo.

Ainda assim, mesmo não concordando com a sua aplicação em idades tão precoces, convivi pacificamente com as provas de aferição aplicadas ao segundo ano em formato papel.

Com o que não posso concordar é com a aplicação destas provas, sobretudo aos alunos do segundo ano, mas também aos dos outros ciclos, em formato digital.

Ao longo dos anos, o que me diz experiência, na aplicação das provas de aferição, é que as crianças nestas idades têm dificuldade em controlar a ansiedade, mesmo quando dominam o meio de resolução, isto é, a prova manuscrita em formato de papel.

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Pelo que o cenário que se prevê, por terem de realizar as provas num formato que desconhecem quase por completo, o formato digital, originará um aumento exponencial dos nervos e ansiedade.

Este ano, assim que soubemos que as provas seriam em formato digital, planeámos uma forma de integrar o uso dos computadores em contexto de sala de aula. Só possível, por questões pedagógicas, a partir do segundo período, pois no primeiro período todos os esforços estão ainda no reforço da aprendizagem da leitura e escrita e, em muitos casos, ainda na aprendizagem do mecanismo da leitura.

Quando, pela primeira vez, testei com os meus alunos o uso dos computadores em sala de aula, foi quase o descalabro completo. Muitos deles não sabiam sequer ligar, quanto mais abrir um browser, inserir o endereço do site e carregar enter!

Quem se lembrou de digitalizar estas provas, decisão que mostra um enorme desfasamento com a realidade do país real, esqueceu-se de prever o tempo que deveria ser gasto, num ano fulcral para o desenvolvimento da linguagem oral e escrita, para familiarizar os alunos com os computadores, tornando-os suficientemente proficientes para fazerem uma prova de aferição, autonomamente, num formato nunca antes por eles testado.

Será que todo o tempo que despendi em várias tardes, para que eles usassem e se familiarizassem com o manuseamento dos portáteis, não teria sido melhor despendido se fosse usado para o reforço de aprendizagens mais relevantes?

Se a intenção era iniciar a aplicação destas provas em formato digital, porque é que não houve a preocupação de introduzir a disciplina de Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) no primeiro ciclo, ou pelo menos ao nível do segundo ano, como disciplina complementar ou mesmo como atividade extracurricular obrigatória? Não terá sido colocar a carroça à frente dos bois?

O facto de todos terem acesso aos tablets, aos telemóveis, aos computadores e com eles jogarem não garante que adquiram, sozinhos, a literacia digital suficiente para se considerarem aptos à elaboração de provas digitais. Creio que essa perceção é errada e facilmente constatável em qualquer sala do segundo ano, por esse país fora. Por essa razão, devia ter sido planeado a melhor forma de implementar as provas digitais: primeiro ensinar a usar, depois praticar e por último testar.

Não concordaria na mesma, mas havia plano. Assim não!

O meu caro Leitor deve estar a perguntar o porquê da minha discórdia. Eu explico.

Discordo, porque considero que, como aliás muitos colegas professores e até psicólogos já vieram publicamente dar conta, uma criança com 7 ou 8 anos (idade regular de frequência do 2.º ano), que aprendeu a ler e a escrever muito recentemente, deve privilegiar o desenvolvimento de outras capacidades. Sendo que ainda não escreve corretamente, deve privilegiar o treino da escrita manuscrita, do desenho da letra, desenvolvendo a motricidade fina e a capacidade óculo-manual que, como nos diz a ciência, é fundamental para desenvolver o próprio cérebro. Deve também dedicar o seu tempo ao treino da consciência fonológica para melhorar a escrita autónoma, deve treinar a leitura, para a tornar fluente o suficiente para perceber aquilo que lê e deve aproveitar o seu tempo para consolidar aprendizagens, que são fundamentais até mesmo para adquirir a literacia digital.

Há quem diga que vai correr bem e que este é o caminho do progresso, que na evolução há sempre resistência de vários atores, mas creio que o ponto fundamental nesta discussão não é o deixar “entrar” ou não o progresso nas salas de aulas, mas sim a defesa pedagógica, cognitiva e mesmo emocional das crianças.

O que é exigido, e eu este ano ajudei na aplicação de provas digitais no terceiro ano, não é deslizarem os dedos no ecrã para verem um qualquer vídeo no Youtube ou TikTok, o que lhes pedem é bem mais complexo. Para conseguirem cumprir têm de conhecer o teclado, de dominar o rato, seja externo, seja o touchpad, e de ser capazes de fazer scroll, puxando os exercícios e os textos para cima e para baixo, de modo a poderem responder convenientemente, pois os ecrãs são pequenos. Quanto tempo irão demorar a escrever uma resposta de interpretação quando se sabe que não dominam o teclado?

Aqui há dias, experimentei aceder às provas digitais de 2022, para perceber as dificuldades de acesso. Estavam cerca de 16 computadores ligados à internet da escola, porque nem todos os alunos tinham levado o seu. Depois de ter ido ao lugar de cada um explicar qual e como se abre o programa (browser) e onde se deve introduzir o endereço do site, ficámos literalmente especados à espera de conseguir aceder. E não conseguimos. Passaram-se cerca de 45 minutos. Alguns computadores perderam a conexão à rede, outros bloquearam o browser por espera excessiva e outros ficaram sem bateria. Era interessante que imaginassem, experimentassem até, o que é acudir a 20 crianças (20 é o mínimo) com as mais variadas dúvidas, do foro informático, ao mesmo tempo. Aquele que não consegue abrir o processador de texto, o outro que carregou involuntariamente na cruz que desliga o programa e não consegue regressar, outro que minimiza o ecrã e não faz a mínima ideia do que aconteceu… enfim, uma panóplia de pequenos problemas que são altamente bloqueadores do normal desenrolar da aula.

Considerando a análise feita, é meu entendimento que as provas de aferição em formato digital não são capazes de aferir os conhecimentos dos alunos do segundo ano. Analiso que estão inquinadas pela introdução da variável computador entre o aluno e a prova. A aferir alguma coisa, seria a literacia digital de cada um, ainda assim tenho dúvidas. Por esse motivo entreguei, a semana passada, um documento que visa fazer um pedido de não realização das provas ao Diretor(a) e Presidente do Conselho Pedagógico, assim como fazer uma declaração de escusa de responsabilidade no caso de o primeiro não ser aceite. Os especialistas somos nós e não qualquer teórico de gabinete, que nunca pisou uma sala de aula e que acredita que os alunos, por terem recebido um computador, ficam automaticamente capacitados digitalmente para realizarem as provas de aferição em suporte digital.

Também não posso deixar passar impunemente a declaração do ministro, que justifica a aplicação das provas digitalmente com o princípio de que serve “para se poupar o trabalho burocrático dos professores”. Uma afirmação que evidencia o descolamento do decisor político com a realidade, ignorando a perigosidade de se querer queimar etapas na formação dos alunos de tão tenra idade e dos prejuízos que terão no futuro.

Nós, enquanto técnicos, devemos veementemente recusar que se destruam cérebros das crianças para defender determinadas teses de que o digital é o progresso.

Às provas de aferição digitais, eu digo não!