Nomeadamente aos fins-de-semana, programas há que insistem em divulgar números telefónicos que permitirão a um dos telespectadores ganhar uma determinada quantia em dinheiro. São programas “pimba” e folclóricos, destinados a classes cuja faixa etária anda lá por cima. Nesses programas, que passam nos principais canais da televisão portuguesa, apela-se exaustivamente a que o telespectador marque um determinado número (de valor acrescentado, está claro) em troca da possibilidade de ganhar um valor de milhares de euros. O telespectador, idoso ou perto disso, liga. Uma, duas, três, dez vezes. O cérebro é manuseado nesse sentido, intercalando-o com música “pimba” ou mostras gastronómicas ou frigideiras de última geração ou aspiradores que andam pela casa como se fossem animais de estimação. Há pessoas que todos os fins-de-semana rebentam bom dinheiro à custa destes sorteios televisivos, onde afirmar que há “cinquenta cães a um osso” é aligeirar grotescamente o problema.

Ao invés, são os mesmos canais que, à hora dos noticiários, falam e convidam especialistas (vivemos tempos em que há especializações até para galinhas que não vão em cantigas de galos) com mestrados ou doutoramentos sobre a problemática das raspadinhas, fazendo da Santa Casa uma casa que de santa só tem mesmo o nome. Todos eles afirmam que são necessárias medidas urgentes para colmatar esta ânsia que as classes mais pobres têm em querer ganhar dinheiro rápido e fácil, apesar das probabilidades de isso acontecer serem altamente diminutas, exactamente como nos programas em que as “Floribellas” desta vida surgem nos ecrãs, no intervalo do “meu nome é Rebeca e o teu qual é?” ou da receita da baba de camelo de Macedo de Cavaleiros, a persuadir os avós para ligarem o 707 qualquer coisa qualquer coisa. A mesma televisão, os mesmos canais, completamente díspares e alucinados. A (in)coerência disto e de coisas similares a isto fazem aquilo da “inteligência artificial” exultar de contentamento, de sorriso amarelo e cínico esbanjado no rosto, à espera que mais temas que exigem atenção e envoltos por uma bandalheira pegada venham à tona de forma estupidificada.

Em As Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, o autor utiliza uma linguagem da mais bela existente na literatura portuguesa, enaltecendo as virtudes paisagísticas durante uma viagem de comboio pela ruralidade e pacatez provinciana portuguesa, mormente pela ancestral lezíria ribatejana. Se fosse hoje, seria evidente que em cada tasca em que Garrett parasse haveria um ou outro camponês a gastar o parco salário da ceifa em raspadinhas. “Foi na Azambuja que conheci Jerónimo Barnabé. Estávamos em meados dos séculos XIX. Sentado junto a uma mesa do alpendre da principal tasca situada no centro da vila, segurava a foice com uma das mãos enquanto que a outra tratava de uma raspadinha que lhe havia custado dois mil reis. Já ia na sexta ou sétima. De repente, de mão aberta, bate com força na mesa. A irritação tomou de assalto o sistema nervoso do Jerónimo: mais uma raspadinha sem prémio! A esposa, a dona Clara Dionísia, caminhava aceleradamente de um lado para o outro. Estava desesperada e só queria que o marido parasse com aquilo, mas nada feito. O vício era galopante. Ele ficou na tasca a dar dinheiro à Santa Casa, que de santa, só tem o nome e a dona Clara Dionísia regressou a sua casa porque estava na hora do “Somos Portugal da Lezíria e Adiante” e era preciso ligar o telégrafo para se habilitar a ganhar uma moderna colecção de enxadas e uma família de robustos porcos cobridores, parecidos àqueles que, no século XXI, cegarão pessoas em prol de vícios fáceis. Entretanto, o comboio atracava no Cartaxo e, na tasca da estação local, uma dúzia de alienados encontrava-se sentado junto a uma mesa coberta por raspadinhas sem prémio. A artificialidade da inteligência tinha viajado no tempo. Pouco havia a fazer”, afirmava Garrett num breve ensaio intitulado “Tripadvisor de Raspadinhas e de Chamadas de Valor Acrescentado pelo Ribatejo Profundo”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR