Não há político, comentador ou jornalista que não proclame todos os dias a necessidade urgente de reformas estruturais, ao ponto de ser hoje impossível tomar uma bica sem ouvir recitar esta ladainha ao nosso vizinho de mesa ou ao empregado do café. Ora, um dos nossos grandes problemas foi precisamente o excesso de reformas que foram levadas a cabo nos últimos trinta anos, por um conjunto de indivíduos que ficaram deslumbrados quando se viram sentados numa secretária de ministro e com uma caneta na mão. Infelizmente, nenhum dos nossos governantes seguiu o conselho prudente e inteligente de Edmund Bunke e de John Maynard Keynes: «A nossa capacidade de previsão é tão pequena que raramente é inteligente colocar em risco um bem presente para uma vantagem futura duvidosa.»

Hoje temos mais versões do Código Laboral, do Código de Processo Civil e do Código Penal do que versões do Windows ou de qualquer smartphone. E já vamos para aí na quarta ou quinta reforma do mapa judiciário. Mas nem o fracasso das sucessivas reformas levou a nossa gente a refrear o seu ímpeto reformador. E ainda hoje se falarmos com qualquer pessoa sobre a solução para a crise, a resposta é impreterivelmente esta: “Têm de mudar-se as leis”.

E podem ter a certeza: se a FIFA entregasse aos portugueses a gestão do futebol, em vez das 17 leis do jogo, hoje teríamos vários códigos com milhares de artigos, os quais, por sua vez, haviam de remeter para regulamentos que ainda estariam por elaborar ou já estavam revogados ou semi-revogados. E o mais certo era, neste momento, todos os campeonatos estarem suspensos à espera que o Tribunal Constitucional decidisse se o facto de os jogadores entrarem em campo com o pé direito ou de se benzerem poria em causa o princípio da igualdade ou ofenderia o princípio de laicidade do jogo de futebol.

Para já não falar nas alterações contínuas das terminologias: os “pontapés de canto” passariam a chamar-se “pontapés de esquina” e, no mês seguinte, “corners de esquina”, e, depois, sucessivamente, “esquinas de pontapés”, “pontapés de corner”, “pontapés de ângulo”, “pontapés de esguelha”… até se esgotar a capacidade inventiva do nosso legislador, altura em que se regressaria ao “pontapé de canto”.

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Este é que é o nosso grande problema estrutural: pensarmos que os problemas se resolvem sentados numa cadeira a fazer leis e regulamentos e a mudar os nomes às coisas. A estabilidade legislativa é essencial para que um povo consiga interiorizar valores e para quem queira aqui viver e investir saiba com o que pode contar. Bem basta os riscos próprios inerentes a qualquer actividade privada.

A Constituição inglesa é a mais antiga do mundo e não é escrita. Em Portugal, pelo contrário, tem de estar tudo escrito, porque, se não estiver escrito, ninguém sabe se pode ou não pode passar um cheque “careca”, matar uma mosca ou assaltar um banco. E mesmo estando tudo escrito tim-tim por tim-tim, falha sempre qualquer coisa… Na eterna busca da perfeição legislativa, o legislador vai mudando as leis todos os dias, transformando o nosso país numa autêntica Torre de Babel, onde ninguém se entende. Acontece que, quando a lei é alterada sistematicamente, a maior parte das vezes para satisfazer as conveniências do legislador e dos seus amigos, perde o seu carácter sagrado e intemporal e, consequentemente, deixa de ser respeitada não só pelo cidadão comum como também por quem tem a obrigação de a fazer cumprir.

Portugal não é hoje um verdadeiro Estado de Direito, mas um Estado de Direito Livre, onde o cumprimento da lei depende demasiadas vezes dos humores e da vontade de quem tem a obrigação de a fazer cumprir. Se for amigo, não se aplica a lei; se for inimigo, é aplicada mesmo nos casos em que a lei expressamente não se aplica.