1 A Assembleia da República aprovou por unanimidade, no passado dia 24 de junho, o Projeto de Lei n.º 809/XIV/2.ª, resultado de uma iniciativa de cidadãos, que sob a epígrafe «valorização do ensino politécnico nacional e internacionalmente», visa essencialmente duas coisas: (i) retirar a limitação legal que impede os politécnicos de outorgar o grau de doutor; e (ii) adotar a designação de universidade politécnica em substituição da de instituto politécnico.

Diga-se, em primeiro, lugar, que a ministração de ciclos de estudos conducentes ao grau de doutor já há muito deveria depender, apenas e só, de um processo de avaliação e acreditação realizado pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), que analisa a qualidade material e a dignidade científica dos cursos conferentes de grau académico, e não da tipologia de instituição que o propõe.

Um doutoramento deveria, assim, ser ministrado sempre que uma instituição de ensino superior demonstre possuir, nessa área, os recursos humanos e organizativos necessários à realização de investigação e uma experiência acumulada nesse domínio sujeita a avaliação e concretizada numa produção científica e académica relevantes, independentemente da forma jurídica e da natureza que reveste essa instituição. E, por isso, deve-se retirar da lei de bases a restrição desta possibilidade a todas as instituições que não tenham a natureza universitária, podendo todas as instituições acreditar e ministrar doutoramentos nas áreas em que são altamente especializadas.

Contudo, e em abono da verdade, refira-se que este processo deveria ter seguido a lógica regular da arquitetura jurídica. O anterior Governo, não tendo uma maioria parlamentar que lhe permitisse alterar a lei de bases do sistema educativo, resolveu aprovar o Decreto-Lei n.º 65/2018, de 16 de agosto, que procedeu à alteração do Regime Jurídico dos Graus e Diplomas, permitindo, apenas na nuvem, que o ciclo de estudos conducente ao grau de doutor passasse a estar ao alcance de todas as instituições de ensino superior. Assim, numa técnica legislativa esquiva e finória, introduziu uma disposição transitória no sentido dessa alteração apenas produzir efeitos quando fosse alterada a lei de bases que impede os politécnicos de ministrarem doutoramentos.

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Ora, não nos podemos esquecer de que uma lei de bases define os princípios gerais e organizativos do sistema educativo português. Assim, a construção jurídica utilizada pelo anterior Governo gera estranheza a qualquer pessoa que reconheça o valor reforçado de uma lei de bases e que saiba que a mesma pressupõe a subordinação dos diplomas que a densificam e a compatibilidade das normas desses diplomas. Como nos ensina o velho adágio, não se começa a casa pelo telhado…

2 Centrando a análise no Projeto de Lei n.º 809/XIV/2.ª, cumpre referir que, se quanto ao primeiro ponto (doutoramentos nas instituições politécnicas) já referi anteriormente que merece concordância, relativamente ao segundo (chamar Universidades Politécnicas aos atuais Institutos Politécnicos) entrámos no campo da semântica com os efeitos indesejados que veremos adiante.

É comum ouvirmos a referência à natureza binária do sistema de ensino superior. De facto, tal referência sintetiza a dualidade de subsistemas que existe: o ensino superior universitário e o ensino superior politécnico. Na legislação vigente, e mais concretamente no Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), existe uma clara tentativa de dividir o sistema de ensino superior em dois grandes grupos e de traçar as diferenças nas missões de cada um deles.

Ao longo de todo o RJIES, são várias as “pistas” que podemos encontrar no sentido de aprofundar as diferenças quanto à natureza de cada um dos subsistemas e de permitir que, cada um, de forma autónoma, cumpra a sua missão originária. Se, por um lado, compete ao ensino universitário a promoção de investigação e de criação do saber, por forma a assegurar uma sólida preparação científica e cultural, a proporcionar uma formação técnica que habilite para o exercício de atividades profissionais e culturais e a fomentar o desenvolvimento das capacidades de conceção, de inovação e de análise crítica, por outro lado o ensino politécnico surge entrelaçado com a ideia de investigação aplicada à compreensão e solução de problemas concretos, capaz de proporcionar uma sólida formação cultural e técnica de nível superior, de ministrar conhecimentos científicos de índole teórica e prática e as suas aplicações com vista ao exercício de atividades profissionais e de desenvolver a capacidade de inovação e de análise crítica.

Compreender a missão de cada um dos subsistemas é essencial para aceitar que as instituições têm, genericamente, respondido às expetativas e necessidades da sociedade ao longo dos últimos anos, ainda que, por vezes, se desviem da sua missão inicial e naveguem em águas que já não são originariamente suas.

A necessidade do ensino universitário se aproximar da sociedade, das empresas e do mercado de trabalho, bem como a tentação do ensino politécnico em não querer parecer um ensino de segundo nível, têm sido fatores de aproximação das missões dos dois subsistemas e que determinaram, porventura, a proposta apresentada por este grupo de cidadãos.

Todavia, mais importante do que mudar simplesmente o nome das coisas é definir previamente se o sistema binário faz sentido, como se deve estruturar e qual o papel das instituições politécnicas no sistema de ensino superior português. É por isso que esta iniciativa é, a meu ver, uma mera operação cosmética, visto que a passagem de Institutos Politécnicos a Universidades Politécnicas (ou de Ciências Aplicadas, como em tempos também já se falou) deveria pressupor a resposta a algumas perguntas prévias: queremos um sistema binário? Se sim, em quê, porquê e para quê? Se não, porquê e para servir quem? Mas sobre essa reflexão, nem uma palavra encontrámos nem na proposta nem no seu debate.

3 Dentro de cada um dos subsistemas existem instituições de ensino superior que revestem diferentes formas jurídicas. É importante sabermos qual a tipologia de cada instituição para, nomeadamente, sabermos se pode ou não ter determinada oferta formativa, percebermos qual a sua missão e compreendermos a sua orgânica de governação.

No ensino superior universitário temos três formas jurídicas de instituições: a Universidade, o Instituto Universitário e o Estabelecimento de Ensino Superior Universitário. Por sua vez, no ensino superior politécnico apenas existem duas formas jurídicas possíveis: o Instituto Politécnico e o Estabelecimento de Ensino Superior Politécnico.

Cada instituição deve ter um projeto educativo, científico e cultural, do qual deve constar a sua natureza, forma jurídica e missão. Para cada tipo de instituição existem outros requisitos gerais e essenciais, inerentes à sua criação e funcionamento, sendo que um deles decorre diretamente de lei, i.e., o número mínimo de ciclos de estudos por grau.

Desta forma, atualmente, para poder ser Universidade deve a instituição estar autorizada a ministrar, no mínimo, seis licenciaturas, seis mestrados e três doutoramentos em pelo menos três áreas diferentes compatíveis com a missão própria do ensino universitário. Por sua vez, para se ser Instituto Universitário, estes números passam para três licenciaturas, três mestrados e um doutoramento.

Ora, é aqui que reside a grande objeção à proposta de cidadãos apresentada e aprovada por unanimidade pelo Parlamento. De acordo com essa proposta, será requisito mínimo para a criação de uma Universidade Politécnica estar autorizada a ministrar pelo menos (i) quatro licenciaturas em pelo menos duas áreas diferentes e ii) três mestrados.

Quer isto dizer que aquilo que este grupo de cidadãos veio propor e o Parlamento veio, na generalidade, a aprovar, foi a possibilidade de existirem universidades sem doutoramentos. O absurdo da proposta reside no facto de, para se ser uma Universidade Politécnica, ter doutoramentos acreditados não se traduz num requisito obrigatório. Ora, pensar-se uma Universidade, ainda que politécnica, sem doutoramentos é uma antítese do próprio conceito de universidade.

Logo, o regime de criação de uma Universidade Politécnica consegue ser mesmo mais brando do que a criação de um Instituto Universitário, para o qual é sempre exigido pelo menos um doutoramento.

4 Achar que uma simples alteração ao nome dos Institutos Politécnicos muda efetivamente alguma coisa na valorização do seu papel é uma proposta ingénua, para não dizer demagógica. Uma verdadeira valorização deste subsistema implicaria uma reflexão aprofundada sobre o binómio financiamento-qualificação/carreiras, mais do que brincar aos nomes das coisas. Assim como implicaria uma discussão séria sobre o papel de ancoragem económica que estas instituições têm nas regiões de menor densidade populacional, cumprindo uma missão de coesão do território.

Fora das regiões das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e das regiões do Algarve e da Madeira, as instituições de ensino superior não são invariavelmente um dos dez, cinco ou três maiores empregadores da região? E um dos dez, cinco ou três maiores clientes da região? Não são dos maiores impulsionadores (multiplicadores) de dinamismo económico, nas dimensões de habitação, transportes, alimentação, vestuário, entretenimento e outros bens de consumo?

Afirmar, sem fundamentar, que a utilização da denominação “Instituto Politécnico” tem criado «dificuldades na procura de parceiros institucionais em diversos países» é cometer um erro que o ensino superior não deveria cometer. Trata-se de um cliché, de uma justificação não demonstrada, que não deveria ser própria de instituições de ensino superior e de profissionais que cultivam o saber e a ciência a partir da verificação e da evidência.

Tanto quanto se sabe, institutos politécnicos como o de Bragança, de Leiria, do Porto ou do Cávado e Ave nunca deixaram de ter uma forte e bem-sucedida estratégia de internacionalização, com aposta na captação de estudantes estrangeiros, de parcerias internacionais ou até mesmo de financiamento, pelo simples facto de utilizarem a denominação “Instituto Politécnico”…

5 A aprovação no Parlamento foi na generalidade, pelo que o diploma baixará agora à 8.ª Comissão, para discussão e votação na especialidade antes da votação final global. Esperemos que a discussão se faça e que o politicamente correto não impere desta vez.