“Frequentemente, nas dolorosas agitações no campo, numa coluna de prisioneiros, quando as correntes de lanternas perfuravam a escuridão das geadas noturnas, brotavam dentro de nós as palavras que gostaríamos de gritar para todo o mundo, se o mundo inteiro nos pudesse ouvir.”
Excerto do discurso de Alekxandr Solzhenitsyn aquando da atribuição do Prémio Nobel da Literatura
O que pensaria se soubesse de alguém a quem é oferecida uma quantia avultada de dinheiro, para que, perante uma atrocidade, a ignorasse e olhasse para o lado?
O que faria se visse alguém que fizesse questão de se mostrar publicamente preocupado com as injustiças e desigualdades sociais, mas em segredo se aliasse a um tirano para mútuos ganhos financeiros?
E qual seria a sua reação se eu lhe dissesse que, muito provavelmente, está a contribuir para esta perpetuação de jogos de poder, entre tirano e opressor, que lhe estou a questionar de forma hipotética?
Não, não estou a falar da visão marxista identitária de luta de classes, atualmente transmutada em minorias vs. maiorias, que persistentemente tentam incutir na psique coletiva ocidental, à qual “supostamente” deveríamos genufletir, em permanente acto de contrição para expiação do nosso alegado complexo de “culpa colectiva”…
Antes que o caro leitor tenha a reação instintiva de julgar que isto não passa de uma série de perguntas retóricas exacerbadas, veja primeiro o que tem calçado, o que bebeu ou que marca de telefone usa.
Falo da promiscuidade do envolvimento do “mundo corporativo internacional” com aquele que representa o maior perigo para quem hoje preza a liberdade: o governo chinês.
Mais recentemente, três reputadas multinacionais (apenas para mencionar algumas), respetivamente a Nike, a Apple e a Coca Cola, têm feito lobby político no congresso dos EUA para enfraquecer uma lei, denominada “Uyghur Forced Labor Prevention Act”, que tem como objectivo proibir a importação de bens provenientes de trabalho forçado na China.
As mesmas multinacionais que não hesitam em fazer anúncios, campanhas de marketing e publicações nas redes sociais a “ostentar” toda a sua “nobre preocupação social” e activismo pelas vítimas de injustiças, como aconteceu de forma mais recente com o caso mediático de George Floyd; as mesmas que contribuem para a narrativa de que os EUA ainda são um país profundamente racista, são as mesmas que fazem lobby político em nome dos seus negócios com um país que consabidamente persegue minorias étnicas e religiosas. Outro exemplo claro do oportunismo mediático recente e da prostituição corporativa de princípios organizacionais foi a Disney. Tal como as empresas anteriormente mencionadas, aquando do caso trágico de George Floyd fez questão de mostrar a sua “virtuosa” preocupação e não hesitou em emitir imediatamente um comunicado oficial a declarar-se chocada com o acontecido e a afirmar-se como uma empresa focada em fomentar uma cultura empresarial concentrada nos problemas e sentimentos da comunidade, promotora de uma cultura de diversidade e inclusão por todo o lado. Talvez a China esteja fora dos limites geográficos do que os membros da Direção Executiva da Disney consideram “todo o lado”, uma vez que a Disney não só não hesitou em filmar o remake do filme da Mulan nos campos de concentração da minoria muçulmana Uighur, como nos créditos do filme não curou de se poupar nos agradecimentos às entidades chinesas em Xianjiang, encarregues da segurança destes mesmos campos.
No seu reinado sanguinário, presumivelmente, Stalin terá dito que “a morte de um homem é uma tragédia, a de vários é estatística”. Para estas multinacionais, que operam com a inerente condescendência propagandística – insincera e oportunista – no que à ação social diz respeito, também há vítimas que são uma tragédia, mas, pelos vistos, uma “boa tragédia”, na medida em que permite a essas empresas “boa publicidade” e criar um véu de ignorância acerca da sua alegada virtude social, enquanto outras vítimas sem rosto, sem identidade, nos confins do Extremo Oriente, onde os olhos não podem enxergar, não passam de números estatísticos; “números” que estão inseridos numa dicotomia de “má publicidade” extremamente lucrativa, que deve ser ocultada e varrida para debaixo do tapete.
Se são os consumidores que, através da “lei da oferta e da procura”, definem o preço dos bens de consumo, também são estes que têm quota parte de responsabilidade na existência destas práticas permanentemente reiteradas, remetendo assim para a terceira questão interpelativa do leitor, acerca da sua provável contribuição indirecta na perpetuação da abordagem predatória do regime chinês em termos de direitos humanos.
Esta é a dissonância cognitiva das multinacionais e dos consumidores que parece não ter fim à vista e que urge alertar e combater. Sempre, por toda a parte, por todos, como se os gritos das vítimas invisíveis estivessem a ser escutados.