A independência dos tribunais, sobretudo do poder político, é um dos pilares essenciais da Democracia. Para a justiça ser realmente cega não pode ser dependente. A única forma de os políticos e as instituições não estarem acima da lei é ser garantido, aos juízes com o poder de os julgar, que a sua decisão não terá consequências na sua carreira. Se for dado ao poder político poder sobre os Tribunais, então evidentemente estes acabarão por fazer o que o poder político quiser.

O mundo inteiro acabou de assistir em directo à importância deste princípio. Só a independência dos tribunais americanos permitiu aos Estado Unidos ultrapassar a crise eleitoral. Mesmo num sistema judicial fortemente politizado como o americano, onde os juízes superiores são apontados pelo Presidente, Donald Trump não conseguiu qualquer vitória nos tribunais, nem  junto dos juízes que nomeou. Se o Presidente tivesse qualquer poder sobre os juízes, poucas dúvidas haveria de que o resultado teria sido outro.

Vem isto a propósito da recente polémica à volta do novo presidente do Tribunal Constitucional. Tudo começou com um peça “jornalística” da activista política disfarçada de jornalista, Fernanda Câncio. Muito haveria a dizer sobre Câncio e sobre como publicar peças de activismo e chamar-lhes reportagens prejudica gravemente a credibilidade do jornalismo. Mas esse é apenas um pormenor nesta polémica.

Também muito haveria a dizer sobre as tendências totalitárias do lóbi LGBT. Nada tenho contra lóbis que tentam passar uma agenda política e legislativa. É assim que funciona em Democracia. Todos têm direito a defender a sua agenda. Preocupa-me mais a tendência do activismo LGBT para tentar “cancelar” quem dele discorda. Mas não é essa a questão mais grave neste caso. Os órgãos de soberania não estão acima do escrutínio público. E se me parece que politizar o Tribunal Constitucional é um erro, é uma opinião aberta a debate, como qualquer outra em Democracia.

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O que é realmente preocupante é ver deputados arvorarem-se em porta-vozes de um lóbi político, fazendo exigências ao presidente do Tribunal Constitucional. Os deputados não são meros comentadores políticos, nem são apenas representantes de movimentos sociais. São titulares de um órgão de soberania. E a Assembleia da República não só não tem qualquer poder de fiscalização sobre o Tribunal Constitucional, como tem o dever de não se imiscuir, de não pressionar, de não condicionar o funcionamento do mesmo. Ter deputados a pedir explicações ao Presidente do TC, ou a pedir a sua demissão, é um atentado ao princípio da separação de poderes. Mais grave ainda é que um partido peça a audição parlamentar de João Caupers. Como se tivessem poder para fiscalizar o Tribunal Constitucional!

O Tribunal Constitucional é o verdadeiro intérprete da Constituição, é o seu guardião. A ele cabe garantir que os restantes órgãos de soberania agem de acordo com ela. O dia em que se admitir que o parlamento possa condicionar o Tribunal é o dia em que esse poder passa para os deputados. Se de cada vez que um partido não concordar com um juiz do Tribunal Constitucional este for obrigado a responder numa audição parlamentar, se os juízes conselheiros passarem a responder aos deputados, então acaba-se a independência do Tribunal. Numa Democracia civilizada nem um juiz acabado de sair do CEJ responde diante do poder legislativo, quanto mais um juiz do Constitucional.

Isto que acabo de afirmar é bastante evidente. O que me espanta é não ter ouvido nenhum deputado a dizê-lo. Poderia dizer que me espantava Ferro Rodrigues não o ter feito, mas estaria a mentir. Mas seria de supor que naquele hemiciclo pelo menos um deputado tivesse puxado um microfone para perguntar se os seus colegas parlamentares não teriam enlouquecido. Mas nada. Aparentemente não choca aos deputados este atentado aos princípios mais básicos da Democracia!

Muito se tem falado sobre o populismo e a erosão da Democracia. Já aqui tive oportunidade de escrever que o populismo não é uma causa, mas um sintoma da degradação da Democracia. São momentos como este, quando uma agenda política se sobrepõe aos princípios democráticos, quando um órgão de soberania ataca outro, que enfraquecem a Democracia. O ataque que testemunhamos ao Tribunal Constitucional, sem qualquer oposição, é um prego no caixão da Democracia. O problema é que começa a faltar espaço para pregar.