Admito que possa acontecer, mas é raro ver a esquerda portuguesa abdicar de uma ocasião para exibir a sua espantosa idiotia. O Bairro das Estacas, em Lisboa, não foi uma dessas raridades. Falei dele como exemplo de como se pode construir mais barato e com boa qualidade. Ou melhor, pode, mas não pode, porque as regras não deixam. Hoje usarei o mesmo bairro como exemplo da relação entre arquitectura e política, de como as correntes da arquitectura se podem tornar mais adequadas a uns regimes do que a outros, e de como os estados totalitários se serviram da arquitectura modernista. O Bairro das Estacas, de promoção pública estatal, foi baptizado naquela altura como Bairro de Habitações Económicas de São João de Deus, ou Célula 8 do Plano de Alvalade, de Faria da Costa. Procurava aplicar os cânones do modernismo, concretamente os cinco pontos da Nova Arquitectura estabelecidos por Le Corbusier: planta livre (solta do esqueleto da estrutura; as paredes deixam de servir para segurar o edifício); fachada livre (igualmente solta do esqueleto, e sem qualquer função estrutural; o desenho da fachada pode assim ser desenhado sem constrangimentos); pilotis (os edifícios são assentes numa grelha de pilares, deixando vazado o piso térreo de modo a libertar o solo); terraço jardim (transfere para a cobertura, no topo do edifício, o solo ocupado com a implantação); e janelas em comprimento (ou “em fita”, reforçando a ideia de fachada livre e abrindo uma relação desimpedida com a paisagem). O Bairro das Estacas só não tem terraços jardim; fora isso, cumpre todos os outros pontos. Considerado concluído em 1951, recebeu o Prémio Municipal de Arquitectura em 1954.
Os factos não limitaram a fantasia de alguns textos circunspectos, onde se lê que o bairro “ousou desafiar a arquitectura do Estado Novo, quando o país vivia sob a ditadura”; e que “rompeu com o gosto do Estado Novo”, “afastando-se de uma arquitectura de regime para ir em direcção ao modernismo”. Nada disto faz o mínimo sentido. Por um lado, a quase totalidade da melhor arquitectura modernista em Portugal está no desenho de edifícios públicos e resultou de encomendas do Estado: Casa da Moeda; Instituto Superior Técnico; Edifício da Estatística; Padrão dos Descobrimentos; Palácio da Justiça; Cidade Universitária (e a lindíssima Aula Magna); Gares Marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos; Biblioteca Nacional. Como, de resto, sucedeu em todas as sociedades de regime totalitário, onde os princípios do modernismo vestem que nem uma luva: nenhuma corrente arquitectónica e urbanística serve melhor a representação cénica do fascismo, do comunismo, ou de qualquer declinação da mesma ideia. Quem franzir o sobrolho deve rever as imagens de Eisenstein, e de Leni Riefenstahl, e a tribuna do Zeppelinfeld, em Nuremberga. Por outro lado, simpática ditadura que dá prémios a quem ousa desafiá-la, rompendo-lhe as suaves regras, para receber o pagamento desta e partir em direcção à encomenda seguinte.
O CIAM (Congresso Internacional da Arquitectura Moderna), responsável pela definição do “estilo internacional”, considerava a arquitectura e o urbanismo como um “potencial instrumento político e económico”, que devia ser usado pelo Estado para “promover o progresso social”. Em 1933, o CIAM produziu a Carta de Atenas, escrita por Le Corbusier e baseada na IV Conferência, que determinou o urbanismo modernista com fórmulas e regras para serem aplicadas internacionalmente. Considerava a cidade como um organismo de planeamento central, e defendia que a propriedade de todo o solo urbano devia ser pública e detida pelo município. A arquitectura modernista, na génese, na definição, e no suporte teórico, era fundamentalmente estatizante.
Dizendo as coisas de outra maneira: pela aspiração à hegemonia mundial, pelo racionalismo tecnocrático, pela monumentalidade, pela ideia de que o estilo é inseparável da função, pela rejeição da escala humana e da linguagem individual, por toda a brutalidade do racionalismo, os princípios modernistas foram a corrente oficial totalitária por excelência. Serviram Hitler, Mussolini, e setenta anos de Rússia soviética. O Estado Novo português, brando, epigonal, e pobreta, promoveu um modernismo adaptado. É falsa a ideia que a esquerda alimenta de que até ao 25 de Abril tudo o que os intelectuais fizeram, e neste caso os arquitectos, foi combater o “fascismo” e desafiar o Estado Novo. Pelo contrário. Na verdade conviveram bem, usaram-se e promoveram-se uns aos outros. Esta espécie de antifascismo retroactivo é um delírio cómico sem pés nem cabeça.