Há mais de duas décadas, Elder criou o modelo life-course que nos ensina que as condições sociais e históricas influenciam muito diretamente as pessoas e estas fazem o melhor que podem dentro destes constrangimentos, que funcionam como aquários de desenvolvimento – cada criança tem o seu “onde”, “como” e “quando”.

Neste momento, olho em meu redor. Vejo uma paisagem árida e desconcertante, onde jazem mais de 50 pequenas casas em alvenaria, mais de 40 “barracos de lata” e também dezenas de tendas em lona. Entre 700 e 1000 pessoas “sub-vivem” neste local. Nalguns barracos e tendas, habitam mais de 5 pessoas. E, para uma boa parte destas pessoas, não existe saneamento básico ou água corrente – apenas uma “bica” de água que está deslocada.

Um adulto convida-me a entrar no seu barraco. Não vejo camas; um pau de madeira segura o teto de chapas; e o chão é terra batida. O Sr. “Inácio” nasceu aqui, não sabe de onde veio o seu avô (quem ali começou a habitar) e a sua idade cronológica mente em relação à sua idade biológica: envelheceu mais rápido. Entretanto, conta-me como os rebentamentos dos esgotos (improvisados) fazem os resíduos desfilarem por todo o “bairro”. As altas temperaturas durante o verão provocam desidratação – o plástico das tendas não ajuda. Nas faces, vejo desesperança e nas perguntas (de adultos e crianças), ouço o “Quando?” – da intervenção habitacional e da “ajuda”.

Segregadas nos arredores de Beja e enfrentando a subjugação socioeconómica diária, assim “sub-vivem” as pessoas ciganas deste “bairro”, o “Bairro das Pedreiras” (todos os residentes são pessoas ciganas). Um levantamento da EAPN Beja e AMEC (2018) contabilizou 1399 pessoas ciganas no concelho de Beja (35% em tendas), cerca de 600 a 700 são crianças. Outrora um “parque nómada” estabelecido pelo município, ficou imbuído num processo de desregulação da utilização do espaço e tornou-se um aglomerado residencial improvisado, onde o “abaixo do limiar da pobreza” é a regra e não a exceção. As respostas habitacionais chegam sempre “tarde demais”, segundo os interlocutores locais.

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Provavelmente, a maioria de nós não conhece este “aquário”. Provavelmente, o planeamento de uma resolução efetiva não está nas prioridades municipais (nem nacionais). Uma dupla penalização e um duplo ocultamento ocorrem, e as crianças e jovens ciganos/as são especialmente afetados/as por esta situação. Há a estimativa de 200 crianças a habitarem este “bairro”. Como “aquário” de desenvolvimento, bloqueia a efetivação dos direitos das crianças (e.g. educação de qualidade, segurança alimentar).

Todos os dias, as suas famílias têm de procurar satisfazer (perante múltiplas barreiras) as necessidades básicas enquanto seres vivos e seres humanos – alimentação, descanso, bem-estar corporal, higiene. E as crianças têm de fazer o mesmo. Essas necessidades não são garantidas. Sob os constrangimentos da segregação territorial, da ausência de condições de habitabilidade, de um ambiente adverso para o corpo, terão elas e os seus pais a mesma liberdade que a maioria das pessoas/crianças em Portugal para decidir, a cada momento, o que fazer? Ir/não ir para a escola? Grau de esforço para concentração numa tarefa escolar? Intenção de compreensão de outras culturas? Imaginar aspirações para o futuro? Criação de hábitos de saúde?

Se a prioridade do organismo é sobreviver, ele “acelera”, adotando uma estratégia de vida “rápida”, onde as decisões são impulsivas e mais focadas no presente. Isto faz sentido porque se, desde muito cedo, uma criança recebe pistas do seu entorno que lhe permitem predizer que as suas chances de sobreviver são baixas e que a vida é difícil de manter (inconscientemente), então, tudo deverá ser feito de forma mais rápida. Não é por acaso que o Sr. “Inácio” tem cerca de 40 anos, mas parece (e de facto está) muito mais velho. Estas crianças poderão tornar-se o “Sr. Inácio” de amanhã, se nada for feito. Estamos a condicionar as suas trajetórias na aprendizagem, na educação e no comportamento. No entanto, o problema não fica (e não começa) por aqui. Reconhecer que elas estão neste “aquário” é reconhecer que os seus organismos estão a ser condicionados desde muito cedo. Estamos a programar a sua biologia para “acelerar”: para que as suas vidas durem menos do que a da população em geral.

Assim, “Bairro das Pedreiras” é um eufemismo no sentido em que designa por “bairro” o que não o é, para silenciar e distorcer o que se passa, ocultando a violência simbólica exercida sobre estas crianças. Ao manter-se um “Eufemismo das Pedreiras” em Beja, estamos a manter uma biopolítica estrutural (pelo silêncio) que fomenta os problemas de saúde nestas crianças e famílias ciganas e, por esta via, a formação e manutenção das desigualdades (educação, participação social e saúde) entre portugueses ciganos e portugueses não-ciganos. Neste caso em particular, no Bairro das Pedreiras, como ouvi da boca de um habitante de Beja: “as crianças nascem mortas e vivem morrendo cedo”.

Criminólogo, Fulbrighter, Doutorando na University of Kentucky, Dynamo International – Street Workers Network, União Romani Portuguesa

‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.