– Estou sim, é o Bento?
– Quem fala?
– Daqui Rui Miguel Tovar. Estou a fazer o Almanaque do Benfica a propósito do centenário e faço questão de falar com um integrante do Benfica vencedor de campeonato e Taça no mesmo.
– Agora não posso, ligue-me às oito.

(…)

(…)

– Estou sim?
– Sim?
– É o Bento?
– Sim?
– Daqui Rui Miguel Tovar. Lembra-se?
– Lembro-me, claro. Disse para ligar às oito e já são oito e um quarto. Estou a jantar. Adeus.

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Manuel Galrinho Bento. Bigode farfalhudo, caracóis à Serafim Saudade. Quiçá o melhor guarda-redes português de sempre com menos de 1,75 metros de altura. Autor de defesas irrepetíveis e, sobretudo, de um carisma insofismável. Também acumula as suas argoladas. Quem nunca? Aos frangos acrescentam-se frases irrepetíveis como a da falta de fruta em Moscovo e os holofotes vs Liverpool. Pitoresco, vá. Fora do relvado, bem fora, Bento é assim mesmo e vacila entre o resmungão e o afável. Para os amigos, é amigo. Para o desconhecido, é simplesmente brusco. Se o tocam num nervo, lá se vai o Carmo e a Trindade. Como naquele telefonema em 2003, a propósito do almanaque do centenário do Benfica. Hey, no hard feeling. Para mim, é uma história para contar. Só. E uma história para rir. E repetir. O seu tom antipático ao telefone até parece gozo. Quando me desliga depois do ‘adeus’, percebo a ideia. Vou tentar outro e apanho o Chalana para falar sobre a dobradinha em 1982-83, a primeira época de Eriksson na Luz.

Serve esta introdução para lembrar um dia especial entre muitos especiais na vida de Bento. Agosto, dia 5. Mil-nove-e-setenta-e-seis. A festa do 75.º aniversário do Schalke 04 conta com três ilustres visitantes, entre Benfica, Liverpool e Feyenoord. Na meia-final, o anfitrião é apanhado em contrapé pelo vice-campeão português graças a um golo de contra-ataque de Néné, a quatro minutos do fim. O outro finalista é encontrado após desempate por grandes penalidades. Dois dias depois, Gelsenkirchen recebe a final entre dois colossos do futebol europeu, que, juntos, acumulam cinco Taças dos Campeôes. O nulo arrasta-se até aos 76 minutos, altura em que Humberto Coelho comete um erro, devidamente aproveitado por Kennedy. Aos 80′, Fonseca passa o meio-campo em grande estilo, avança mais uns metros e cruza para o 1-1 de Alberto. O jogo acaba empatado, seguem-se os penáltis e aí que Bento veste a capa de super-herói. Na primeira série, defende os remates de Hansen e Kennedy. Na segunda, o de Thompson. Pelo meio, faz ele mesmo o 3-3, com uma paradinha. “No final do jogo, e antes de levantar a taça, fui pedir desculpa ao [guarda-redes] Ray Clemence”, justifica o número um. Bento, claro.

É o número um à baliza. Em tudo, até a defender (e a marcar) penáltis. Senão veja-se bem a coisa: é o recordista de penáltis defendidos na 1.ª Divisão, com seis (à frente de Rui Patrício, ‘só’ cinco). Desses seis, metade pertencem a Gomes. Um nas Antas e dois na Luz. Pormenor inacreditável, a respeito da tal época 1982-83: defende um penálti de Gomes, na 24.ª jornada, e outro de Jordão, na 29.ª e penúltima. Em questão de semanas, defende penáltis dos dois maiores monstros goleadores portugueses, reis na arte do penálti, rivais até à última casa (FC Porto e Sporting).

Como se isso fosse pouco, ainda é homem para desbravar caminhos e marcar penáltis. Marcar, isso mesmo: meter a bola na marca, encarar o outro guarda-redes e atirar à baliza. Na 1.ª Divisão, tenta uma vez a sua sorte e é Meszaros quem lhe adivinha os intentos (na mesma tarde em que Bento defende a tal bola de Jordão). Na Europa, tenta uma vez e sai em estilo, como herói. Além de defender o primeiro remate do Torpedo, em Moscovo, para a Taça dos Campeões 1977-78, é dele o 4-1 definitivo. Assim mesmo, sem medos. Mais tarde, no Torneio Teresa Herrera, defende dois e marca o seu. Bento é inigualável. E ainda detém o recorde nacional de imbatibilidade, estabelecido em Outubro 1980, com 1219 minutos sem sofrer qualquer golo – quebra o mito Magnus Andersson, do Malmö, na Suécia. E também é autor de um golo de baliza a baliza na 1.ª Divisão, ainda ao serviço do Barreirense (4:1 à Académica, no Manuel de Melo).

Quiçá o melhor guarda-redes português de sempre com menos de 1,75 metros de altura. Quiçá? Essa é boa. O melhor, claramente. Adeus.