É gloriosa e orgulhosamente nosso o maior vate das Espanhas e um dos maiores génios da literatura mundial. No cinquentenário de Luís Vaz de Camões, poeta maior da belíssima língua lusa, essa última flor do Lácio, não apenas Portugal, senão toda a orbe devia juntar-se às comemorações em preito daquele que, na constelação dos grandes bardos, figura ao lado de Homero, Virgílio, Horácio, Ovídio, Dante e Shakespeare.

Resistindo à natural tendência de mitificar os génios, a que, inter alia, se prestam os escassos dados biográficos da sua vida epopeica, importa sobretudo enfatizar o homem de uma cultura assombrosa, clássica e verdadeiramente sesquipedal, bem como o temperamento aventureiro e quezilento, a alma inquieta e peregrina.
De facto, Camões foi talvez dos únicos homens de letras cuja vida não fica aquém da obra. Tendo logrado a conciliação de contrários, Camões adunou em si pensamento e ação, espírito e carne, transcendência e imanência, amor e sensualidade.

Tragado pela terra há cinco séculos,  talvez por isso permanecerá sempre nosso contemporâneo. E não pela continuidade de um certo quadro conceptual, como se de alguma forma preservássemos uma certa weltanschauung quinhentista, mas pela simples razão de que os homens e as obras de génio transcendem o seu tempo e têm o condão de ressoar nas mais ignotas cordas do sentimento humano, atravessando os homens, as crises e as épocas.
Escreveu Joyce, quase escolasticamente e a propósito da cidade de Dublin e dos irlandeses, que o particular contém o universal. Estranho e distante autor para citar, mas o certo é que Camões operou precisamente o mesmo, séculos antes.
Cantando e valorizando a portugalidade, logrou o nosso maior fabro universalizar a particularidade portuguesa, pelo que, arraigando-a num património espiritual radicado na gesta de sangue e memória que eximiamente cantou, universalizou-a, integrando-a numa “cosmovisão mais ampla” cujo desígnio excede Portugal e os portugueses.
E isto num épico que, lido de forma escorreita, é sobremaneira crítico da Grei a que se propôs louvar, pelo que não faltaria à verdade quem denotasse que, além da evidente tenção panegírica, Os Lusíadas são também uma objurgatória à ganância, ao poder, à iliteracia e a essa “vaidade, a quem chamamos fama!” de que alguns portugueses foram lamentáveis embaixadores.

E diga-se mais. Camões, que alhures escreveu “mas o melhor que tudo é crer em Cristo”, era evidente e profundamente cristão. Mas nem por isso sacrificou à fé o alto valor e a torrencialidade da liberdade poética, pelo que era tanto filho de Cristo como do deus délfico. De facto, tamanha foi a sua genialidade que mesmo o encontro de Vénus e Júpiter e o episódio da Ilha dos Amores, onde a nudez é apresentada sem disfarces – e, quiçá, como manifestação de transcendência e, portanto, como uma das formas de alcançar Deus – não foram devorados pelas fauces negras da Santa Inquisição, que desde 1536 assentara arraiais em Portugal. É, aliás, inesquecível a análise de frei Bartolomeu Ferreira, benemérito dominicano a quem muito devemos, com que liberou o livro: “Vi por mandado da santa e geral inquisição estes dez Cantos d’Os Lusíadas de Luís de Camões […] e não achei neles cousa algua escandalosa, nem contrária à fé e bons costumes, somente me pareceo que era necessário advertir os Lectores que o Autor, pera encarecer a dificuldade da navegação e entrada dos Portugueses na Índia, usa de ua fi[c]ção dos Deoses dos Gentios […].  Todavia, como isto é Poesia e fingimento, e o Autor, como poeta, não pretenda mais que ornar o estilo Poético, não tivemos por inconveniente ir esta fábula dos Deoses na obra […]”.

De maneira que, para lá das datas, das frustes tentativas de reconstituições biográficas, da tentação de ver ou encontrar nas suas rimas a chave que permita preencher essa nebulosa em perpétua expansão que é a sua vida, interessa sobretudo evocar o génio e a sua visão da natural harmonia do mundo, simultaneamente natural e transcendente, bem como a intemporalidade da sua Lírica.

E lê-lo, lê-lo muito, “Porque quem não sabe arte, não na estima”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR